Pular para o conteúdo principal

Sobre as afinidades eletivas que nos conectam aos outros e aos nossos vários eus

(Daníssima que sabe exercitar bem a alegria de ser livre, no Alles Stenar em visita à Suécia, 2009)

Uma das grandes "brigas" que a gente tinha em casa, quando eu era adolescente, era o fato de viver meio que na rua, na igreja, onde quer que fosse com amigas e amigos. Eu passava quase o fim de semana todo organizando festas, quermesses, o santo a quatro, só para passar na companhia de minhas amigas e nos divertirmos. Sim, eu era quase uma santa adolescente! Até uma freira carmelita me dizer com todas as letras "você não tem vocação para ser freira, querida", vá namorar!

Lembro de minha mãe sempre dizendo de sua tristeza por eu parecer "preferir" as amigas ao invés da companhia da família, embora, no fundo, ela nunca tivesse me proibido ou dificultado meu desejo de sair sempre para o mundo. Seja quando quando pensava que seria freira, depois quando quis largar o trabalho para estudar filosofia em tempo integral e depois quando vim morar na Suécia.

Naquela época minha irmã também me dizia o mesmo e eu ficava em dúvida se eu era mesmo uma desnaturada com a família. A verdade é que eu não amava ninguém mais do que minha família, mas era fato que eu era o tipo que adorava estar com os amigos. E eu estava bem na fase de querer buscar um grupo para me identificar. Em minha cidadezinha pacata era mais fácil e rápido ter companhia nos amigos da igreja.

E com os amigos e amigas (as duas com quem eu mais ficava grudada, Rose e Solange, perdemos em um acidente de carro na época) eu amava brincar de ser outra Sônia. A Sônia que, em casa, normalmente eu não tinha oportunidade de ser, tocando violão até altas, falando de sonhos quase impossíveis... Isso porque a gente sempre desempenha papéis extremamente diferentes quando está com os pais, com o marido, com os amigos e amigas, com colegas de trabalho.

Somos tantos em um só e isso é algo do qual sempre tento me lembrar, porque sei que preciso, assim como minha mãe precisa, meu marido e meu filho precisam, de gente diferente ao meu redor. Não quer dizer que finjamos ser alguém que não somos, mas não acredito ser possível falar de tudo com todo mundo. É mais fácil soltar um lado nosso em companhia dessa ou daquela pessoa.


(Recebendo um abraço carinhoso de minha amiga amiga Dani, Davos, Suíca, abril, 2010)

Por essa razão, creio que as relações e os laços que criamos com os amigos nunca podem se comparar aos da família. E também não podem ser comparados entre um amigo e outro. Ao menos para mim. Mesmo que em família também nos sintamos amigos e mesmo que com amigos a gente quase se sinta uma família, eu vejo nesses relacionamentos formas muito diferentes de amar e de se relacionar.

E no fundo acho que quando se tem amigos e se convive muito com eles a gente aprende a cuidar melhor da amizade com a família. Foi quando saí de casa para morar na moradia da Universidade e o afastamento dos meus pais e da rotina que nos envolvia que eu pude valorizar o jeito deles me amarem. Foi sendo tratada de forma diferente pelas amigas, pelas mães delas (às vezes muito bem, às vezes muito mal) que fui vendo outras formas de se viver em família e perceber as peculiaridades da minha.


(Minhas amigas moradoras da Suíca, Dani, Gi com o marido e a filha, e Lud ouvindo as minhas baboseiras engraçadinhas de sempre, Baden, abril, 2010)

Essa reflexão me pegou essas últimas semanas novamente quando estive na Suíça pela segunda vez na casa de meus amigos brasileiros queridos, Dani e Rogério, que lá vivem já há alguns anos. Também fui tomada pelo mesmo pensamento ao fazer uma "noitada" quase adolescente de mulheres com minhas amigas brasileiras, Xu, Li e Ângela.

No primeiro caso foi um sentir-se muito acolhida, um sentir-se entre velhos amigos com quem se pode falar asneiras, rir alto e feio, chorar as pitangas, ouvir e filosofar sobre o rabo da lagartixa. Foi o jeito deles porem a cama e o café da manhã pra gente, a maneira como nos fizeram sentir totalmente em casa que me deixou até emocionada.

Conheci a Dani num projeto voluntário, chamado Universidade Solidária, iniciado e idealizado conosco no ano de 1996 por Ruth Cardoso. A idéia era levar universitários do Brasil todo para lugares muito pobres do sertão do Nordeste, fazendo com que nós ao mesmo tempo que nos sentíamos ajudando o povo de lá com cursos educacionais fôssemos, na verdade, afetados e educados a respeito da dura realidade do povo nordestino. Ficamos um mês juntas com mais umas dez pessoas. Cada qual de uma área. Nunca mais fui a mesma depois daquela experiência e acho que a Dani também.

Quero dizer: tenho afinidades com a Dani que não tenho com a maior parte dos outros amigos. Foi uma situação, um pensamento e um posicionamento nosso totalmente diferente que nos uniu naquela época.

Depois, dividimos festas, amores e dificuldades financeiras na moradia, onde passei anos inesquecíveis de minha vida. Fui madrinha de casamento dela com Rogério, acompanhei anos de sua vida, nos separamos fisicamente e a amizade foi resistindo bravamente através de emails ou falas corridas no skype. O mesmo que faço com a maior parte dos antigos amigos e amigas.

O encontro nas montanhas suíças nos reuniu como amigas de sempre. Os laços e as afinidades estavam quase intactas, apesar das nossas experiências particulares dos últimos anos terem sido bastante diferentes.

(Celebrando a alegria de estar junto, Liana, eu, Ângela e Xu, na nossa noite adolescente do pijama, Malmö, abril, 2009)

No segundo caso, uma "noite do pijama" juntou-me a algumas amigas que fiz na Suécia na casa da Xu que, com o marido viajando, abriu sua casa como abre normalmente o coração. Do jantar preparado a muitas mãos ao café da manhã do outro dia nos demos a oportunidade de brincar de sermos solteiras e descompromissadas. Falamos até as altas horas, dançamos, brincamos, dividimos nossas coisas mais profundas. Sabe aquela coisa bem teen de se sentir entre as amigas queridas e deixar a hora passar sem pressa? Foi assim. Apoio total dos maridos que também têm apoio total nosso para criar programas masculinos legais nos quais se divirtam e se sintam moleques de novo.

Para mim é curioso perceber como essas saídas além de servir para nos alegrar e nos dar aquela oportunidade de desempenharmos os vários papéis que nos cabem e nos realizam na vida, também nos junta mais a quem deixamos. Voltei no outro dia tão cheia de saudade, tão cheia de energia nova.

Estar entre amigos e trocar profundas experiências, desempenhar lá um dos papéis que me cabem significa entender melhor sobre eu mesma. E entender melhor quem sou me ajuda a ficar imensamente grata por ter alguém que me tolere dia e noite, semana após semana... com todos meus defeitinhos e defeitões, me amando na tristeza e na alegria.


(Conversa séria e conversa fiada, brincando de ficar bonitas depois de ficar muito feias, Malmö, Suécia, 2009)

E isso acho que é algo que é possível com algumas amizades, mas sobretudo em família, entre marido, mulher e filhos.

Estar entre amigos nos ajuda em família e vice-versa.

Lembro-me de um dos muitos casais doentios que já conheci até hoje, uma estudante com quem morei pouco tempo na mesma casa na república universitária, a qual o namorado a pegava para tomarem café da manhã juntos antes de ir pra facul, daí iam caminhando ou de ônibus juntos, almoçavam no bandeijão, depois voltavam juntos e ela só jantava com ele. Cozinhavam sozinhos na cozinha, enquanto o resto eu e as meninas da casa nos juntávamos para comer todos os dias. Nem sei direito quem era ela, porque simplesmente não pude trocar nada com ela. Fim de semana? Claro! Juntos!

Era tão sufocante que até os de fora se sentiam enclausurados.


(Afinidades para lá das listras que nos unen, eu e Xu na casa dela, Malmö, Suécia, abril, 2009)

Acho que para mim relacionamentos ciumentos e sufocantes são intoleráveis porque as afinidades que nos ligam a amigos, à família e aos relacionamentos amorosos são cada qual importante de uma forma diferente. Não dá para viver apenas com uma delas. Não dá para desprezar nenhuma delas. Não dá para querer que alguém que amamos possa viver só do nosso amor ou vice-versa. Além de ser uma atitude egocêntrica demais não prova amor nenhum.

Ciúme combina bem com insegurança e revela também egoísmo. E tanto insegurança quanto egoísmo não são provas nem combinam nada com amor.

Mãe que acha que é a melhor amiga da filha e de que esta nem mesmo precisa de ter outra, marido ou mulher que tem ciúme da companhia dos amigos do outro etc ao meu ver são formas inseguras de amar.


(Minha amiga curtindo meu Ângelo e vice-versa, Alles Stenar, Suécia, verão de 2009)


Na minha opinião a completude e a felicidade de "todos os meus diferentes eus" se dá quando reconheço as mais diferentes afinidades que me conectam às pessoas com quem mantenho contato. Isso porque elas exigem de mim diferentes tipos de amar, diferentes formas de conversar e ser. E, por sua parte, são capazes de me dar uma complexidade de sentimentos muito maior do que uma pessoa ou um grupo só me daria.

E é nesse ser livre para ser eu mesma, mesmo quando não quero ser totalmente eu mesma, que está minha grande alegria de viver...


Comentários

Anônimo disse…
Esse post me deixou saudosa, mas feliz!
Essa parte do saudosismo vem das amizades... eu vivia com amigas também quando no Brasil. Quando era adolescente, muitas, e depois, poucas e boas. Já por aqui ainda não encontrei amigas de verdade. Gosto de um ou outra, talvez só uma eu me veria sendo amiga de verdade. Também por saber que na minha volta à Suécia iremos direto pra Estocolmo, tenho medo de cativar e ser cativada, nos moldes do pequeno principe. Assim, não sou infeliz, mas sinto que faltam boas amizades pra minha vida ter um equilíbrio maior de novo.
Já sobre a parte do ciúme, concordo plentamente contigo, e é essa parte que me faz feliz: saber que passamos da fase insegura e egoísta. Amar é dar liberdade, é confiar e querer o melhor por outro.
Beijos!
Myrna disse…
"E é nesse ser livre para ser eu mesma, mesmo quando não quero ser totalmente eu mesma, que está minha grande alegria de viver..."

Creio que sua última frase resume tudo!
Também tenho saudades das minhas verdadeiras amigas...aqui onde moro hoje as pessoas são estranhas....ou talvez eu tenha me tornado estranha...sei lá!!!!
beijos quadruplicados agora rsrsrs
Iara disse…
Lindo post! Eu sinto a mesma coisa. Tenho amigas (principalmente, mas há amigos também) de contextos muito diferentes, igualmente queridas, claro. E em determinados momentos a gente fica mais próxima de algumas, porque as agendas e o estilo de vida combinam mais, né? Lembro que, no final da faculdade, eu e um amigo ainda dos tempos de colégio tínhamos horários muito parecidos. Então a gente almoçava juntos, ia pra biblioteca estudar juntos, e se eu não ligasse no final de semana, era ele quem me ligava chamando pra um cineminha. O povo achava até qie a gente era namorado, tamanho o grude.
Agora eu sou vizinha de uma amiga de infância que está no mesmo momento de recém casada. E, puxa, a gente ficou comadre e tem muita figurinha pra trocar. O outro amigo continua sendo amigo, claro, só não dividimos tanta coisa com tante freqüecia.
Ah! E sexta-feira marido foi pra um churrasco com os colegas de trabalho e eu não fui. Recebi uma amiga de Brasília, da época que morávamos na França, e mais outra que é de São Paulo mesmo. E que delícia tomar cervejinha e comer pizza lembrando deste tempo. Ter este momento tão nosso! Também não consigo entender casal que não se dsgruda. É tão bom ter coisas novas pra contar para o outro, né? Tão saudável pro relacionamento isso.
Lúcia Soares disse…
Como sempre, brilhante!
Não vou nem dizer nada. Muita gente se sente assim, e não sabe verbalizar. Eu, com certeza.
Beijos!
Celia disse…
Muito bem escrito esse seu post. Cada amizade tem seu valor, seu significado. Existem amigos q passam em nossa vida e ficam pra sempre, sem que precisamos estar juntos todos os dias. A familia é uma amor diferente sim. Um amor que une todos os membros, mas o amor ao amigo é tambem importante e que precisamos na vida.
Eu moro em Estocolmo ha 21 anos.
Tenha uma boa semana. Bj
Danissima (Dani Sauro) disse…
Somnia querida,
nem sei o que dizer deste post... quer dizer... penso em tanta coisa, como, por exemplo, dizer obrigada por continuar minha amiga apesar da distância física.
Obrigada, tb, por me deixar entrar na tua vida e na do teu filho.
Obrigada por ter pegado um ônibus, um trem, um avião e um trem para vir me visitar :-)
Fico feliz, tb, que vc tenha as amigas da noite do pijama, que tive a oportunidade de conhecer pessoal- e virtualmente.
Abraço forte!
Maravilhoso post Somnia! Nem tenho o que dizer depois de ler isso que escreveu....amigos, escolhemos.....simples assim...beijos.
Beth/Lilás disse…
Brabuleta querida!
Lendo você pude entender melhor o espírito livre de meu filho, pois eu muitas vezes, olhava para ele como sua mãe, achando estranho sua preferência por ficar sempre com amigos à volta ou como agora, tentando fazer sua vida longe e graças a Deus muito bem.
Estou escrevendo e ouvindo Yellow do seu post abaixo que amo de paixão.
Coldplay foi-me apresentado por meu filho quando ele voltou de um intercâmbio nos USA e eu virei fã apaixonada também.
Soninha, no fundo sou como você, adoro cultivar e estar com amigos, adoro perder noites em bate papos alegres, cantorias de videokê, rir ou chorar relembrando coisas e nesta pequena estadia no Spa esta
semana passada com minha amiga Teresinha, aconteceu isto também, pois conversamos muito, demos risadas, dançamos, cantamos e fizemos tantas coisas que mulheres adoram e que só poderiam ser curtidas tendo maridos como os nossos que comreendem a importância desses momentos para nós.
Te entendo completamente querida!
beijinhos cariocas
Xu disse…
Muié, que post + lindo! Não só pq eu tô nele (hehehe)... mas pq o assunto em questão me gusta mucho!
Tb amo minhas amigas e... minha mãe e irmã sempre falaram q eu era a "desalmada" (rs) da família...é, + uma coisa q temos em comum ;-)
Qdo vc contou a história q uniu vc e a Dani, achei o máximo... e tenho certeza q distância nenhuma no mundo vai atrapalhar esta amizade.
Se me permite, tenho a mesma sensacão sobre a nossa amizade. Me sinto abencoada por ter vc como amiga aqui na Gelolândia. :-)
Nossa noite do pijama foi ótima!!!!

bjos
Márcia Cobar disse…
Sonia,
Escreves com uma leveza magnifica, viajei pra longe com seu texto, com suas fotos com suas amigas.
Lembrei-me das minhas... das antigas e das novas. Cada uma desempenhando seu papel...
Abs,
Marcia

Postagens mais visitadas deste blog

"Em algum lugar sobre o arco íris..."

(I srael Kamakawiwo'ole) Eu e Renato estávamos, há pouco, olhando um programa sueco qualquer que trazia como tema de fundo uma das canções mais lindas que já ouvi até hoje. Tenho-a aqui comigo num cd que minha amiga Janete me deu e que eu sempre páro para ouvir.  Entretanto, só hoje, depois de ouvir pela TV sueca, tive a curiosidade de buscar alguma informação sobre o cantor e a letra completa etc. Para minha surpresa, o dono de uma das vozes mais lindas que tenho entre todos os meus cds, não tinha necessariamente a "cara" que eu imaginava.  Gigante, em muitos sentidos, o havaiano, e não americano como eu pensava, Bradda Israel Kamakawiwo'ole , põe todos os estereótipos por terra. Depois de ler sobre sua história de vida por alguns minutos, ouvindo " Somewhere over the rainbow ", é impossível (para mim foi) não se apaixonar também pela figura de IZ.  A vida tem de muitas coisas e a música é algo magnífico, porque, quando meu encantamento por essa música come...

O que você vê nesta obra? "Língua com padrão suntuoso", de Adriana Varejão

("Língua com padrão suntuoso", Adriana Varejão, óleo sobre tela e alumínio, 200 x 170 x 57cm) Antes de começar este post só quero lhe pedir que não faça as buscas nos links apresentados, sobre a artista e sua obra, antes de concluir esta leitura e observar atentamente a obra. Combinado? ... Consegui, hoje, uma manhã cultural só para mim e fui visitar a 30a. Bienal de Arte de São Paulo , que estará aberta ao público até 09 de dezembro e tem entrada gratuita. Já preparei um post para falar sobre minhas impressões sobre a Bienal que, aos meus olhos, é "Poesia do cotidiano" e o publicarei na próxima semana. De quebra, passei pelo MAM (Museu de Arte Moderna), o qual fica ao lado do prédio da Bienal e da OCA (projetados por Oscar Niemeyer), passeio que apenas pela arquitetura já vale demais a pena - e tive mais uma daquelas experiências dificilmente explicáveis. Há algum tempo eu esperava para ver uma obra de Adriana Varejão ao vivo e nem imaginava que ...

"Ja, må hon leva!" Sim! Ela pode viver!

(Versão popular do parabéns a você sueco em festinha infantil tipicamente sueca) Molerada! Vocês quase não comentam, mas quando o fazem é para deixar recados chiquérrimos e inteligentes como esses aí do último post! Demais! Adorei as reflexões, saber como cada uma vive diferente suas diferentes fases! Responderei com o devido cuidado mais tarde... Tô podre e preciso ir para a cama porque Marinacota tomou vacina ontem e não dormiu nada a noite. Por ora queria deixar essa canção pela qual sou louca, uma versão do "Vie gratuliere", o parabéns a você sueco. Essa versão é bem mais popular (eu adorava cantá-la em nossas comemorações lá!) e a recebi pelo facebook de minha querida e adorável amiga Jéssica quem vive lá em Malmoeee city, minha antiga morada. Como boa canção popular sueca, esta também tem bebida no meio, porque se tem duas coisas as quais os suecos amam mais que bebida são: 1. fazer versão de música e 2. fazer versão de música colocando uma letra sobre bebida nela. Nest...