(Pôster do intrigante e comovente "O Curioso Caso de Benjamin Button)
Mais uma estação e as portas do trem se abriram rapidamente. Uma pequena multidão brigou no olhar por um e outro assento, entre eles uma jovem mãe e seu bebê.
Os olhos de Sonildes quase voltaram ao livro deitado em seu colo, mas algo a fez parar por alguns milésimos de segundos meio assustada. O horror estampado na pele, na face de uma pequena criança.
A viagem era rápida e estar ali com mãe e filho em frente, ouvir a mãe cantarolando tão serenamente e feliz com seu filho era uma vivência mais forte do que Sonildes esperara enfrentar naquela rápida viagem de metrô de sua casa até o centro da velha São Paulo.
O bebê era feliz. Sorria e respondia muito aos carinhos da jovem morena, cuja idade provavelmente não passava de uns 26 anos. O que chamava atenção de Sonildes e de todos ao redor era a face do menino. Suas pálpebras caídas e muito avermelhadas ficavam ainda mais à mostra naquela pele toda solta, escamada, como se algum tipo de queimadura tivesse desfoleado cada centimetro daquele pequenino corpo e levantado-a como uma folha seca de outono prestes a cair.
Qual caminho levara aquela mãe e seu bebê até ali? Vindo da estação do Hospital das Clínicas eles obviamente deveriam estar em tratamento... mas teria a mãe deixado seu bebê se queimar? Cantarolava ela tão docemente por culpa? Como viveria aquela criança em seu futuro se a cada segundo os olhos de toda a gente se voltava a ela com pesar?
O livro nas mãos de Sonildes parecia um portal. Ela ia e voltava, tentava fixar os olhos e voltar a sua leitura, mas em cada letra seus olhos mergulhavam num infinito de probabilidades... Lá fora o escuro do túnel e o vulto do menino descamado e sorridente ainda estava ali.
Por que as coisas deveriam de ser assim?, pensou sofridamente Sonildes.
Por que aquela criança e não outra? Por que aquela mãe e não ela ou uma outra? Qual sofrimento ainda estaria reservado para os dois?
Entre os sons estridentes do trem Sonildes fantasiou algumas saídas... Imaginou-se oferecendo dinheiro para que a mãe pudesse pagar para o filho o melhor cirurgião do mundo e seguisse a vida mais tranquila... Viu-se a si mesma dizendo "meu pai é um grande médico e tem uma clínica famosa de cirurgia plástica, tome meu cartão porque faremos a cirurgia e o que for preciso de presente...", mas rapidamente lembrou que nem sua família tinha dinheiro, nem seu pai havia sido médico, nem ela poderia de alguma maneira consertar a vida daquelas duas adoráveis e sofridas criaturas a sua frente.
Em meio a toda aquele tumulto interior, Sonildes pôde ouvir a voz de Prince, o menino a quem dera a luz meses atrás e cujo pai ela ainda não sabia bem ao certo dizer quem era, ecoando em sua mente. Seus sorrisos, seus gestos de amor, seu olhar de cumplicidade. Sua pele lisa, fina e perfumada...
Estranha era a vida...
Parecia um milhão de anos atrás quando ela decidira finalmente desistir de lutar entre seus dois amores, Suécio e Brasil, e decidira levar aquela gravidez adiante sozinha... Se não era possível escolher entre os dois então melhor era não ter pela metade nenhum deles. Doía mais tê-los pela metade do que o contrário. Assim, ao menos, ela tentava ser alguém por inteiro como era antes... Apesar disso, ali, naquele rápido momento no metrô Sonildes se deu conta do quanto as mulheres podiam ser ainda mais fortes quando tinham em seus braços uma criança... E de como podiam agir como anjos ou demônios.
Aquela mãe, de tanto amar, se esmerava em cuidados e fazia daquela criança a criatura mais merecedora de amor da face da terra... embora todos ao redor, de tão chocados, não conseguissem esboçar nenhum sorriso, nenhuma brincadeira, nenhuma alegria. Aquele pobre bebê pura escamas ao mesmo tempo que chamava a atenção de todos era também também invisível...
Sonildes sentia culpa. Embora tendo para si um bebê perfeito e amando-o mais do que a si mesma, não fora capaz de dar-lhe a alegria que qualquer criatura no mundo deseja: ter um pai e uma mãe para amar. Não fora sensata a ponto de revelar ao menos um de seus antigos amores que um deles havia sido pai no último inverno. Por enquanto privava seu doce Prince de ter o abraço e o aconchego do colo de um pai...
A estação seguinte chegara e o homem ao lado levantou bruta e apressadamente acordando Sonildes de seu sono da razão. Então ela conseguiu ouvir uma conversa de alguém curioso com a mãe do menino quem respondia simpática e esperançosa:
- Não... ele não se queimou, ele nasceu assim... é uma doença rara e ele está em tratamento.
- Tem cura? Insistiu a senhora de marrom, enquanto todo o restante de quem ainda estava no trem matava sua própria curiosidade.
- Não... mas ajuda a manter assim e não piorar, respondeu a mãe ajeitando bolsa, criança e casaco ao se levantar e tentar sair do trem...
Então Sonildes colocou bem os olhos sobre as mãozinhas ásperas, enrugadas como a de um velho de 95 anos, daquela pobre criaturinha... Mesmo sentindo-se tão impotente, desejou a ele toda a paz que o mundo pudesse lhe dar, toda a força que uma vida fosse capaz de oferecer. Fechou o livro, colocou-o na bolsa e tomou o telefone...
Comentários
belo post!
Elisabete Moraes, caxambu
As tragédias nas grandes cidades às vezes passam desapercebidas pela maioria, mas os sensíveis, os de bom coração, a tudo vêem e fazem lá dentro de si uma prece, silenciosa, como a que fez, desejando que seu caminho seja abençoado.
um abraço querida Sonildes
bjs
Pensamentos bons, desejo de ajudar, ajuda efetiva, servem para pelo menos amenizar a dor de muitos.
Beijo!
Dias felizes