(Eu, recebendo um delicioso abraço de Dia das Mães do Ângelo, sem querer aparecer direito na foto, porque não estava bonita o suficiente, maio de 2009)
Eu e minha santa mãezinha Maria nunca fomos de ficar de muitas confissões sobre o que sentimos. Minha mãe fala muito e eu também, mas não falamos muito de nós mesmas. Falamos indiretamente. É nosso jeito de funcionar. Ela, extremamente amorosa e dedicada, eu agradecida e carinhosa como uma boa filha tenta ser.
Eu não teria nada de novo para contar, não fosse uma conversa que tivemos no skype, bem ao estilo de mãe e filha, nas minhas últimas semanas, ou últimos dias antes de eu dar à luz ao Ângelo, dois anos atrás. Eu já com algumas contrações e com medo do que viria perguntei: "Mãe, como foi seu parto quando eu nasci? Ao que minha mãezinha, que vivia naquela época no meio de uma roça no interior de São Paulo com meu também santo pai José, me respondeu:
- Ihhh... Eu tive que passar nove porteiras pra chegar ao hospital Sônia!
- O quê? Como assim nove porteiras mãe?
E foi então que ela me contou sua sina daquela noite antes ter sua primeira filha, aos dezessete anos de idade. Naquela madrugada ela acordou meu pai, porque já estava com as contrações muito fortes e ele, que como quase todo homem era lento que uma coisa, foi lá, desamarrou o cavalo no estábulo, colocou a charrete, tudo na maior calma. Dona Jovem Maria acabou subindo sozinha na condução, pegou literalmente as rédeas da situação, foi levando a charrete, enquanto meu pai descia, abria a porteira seguinte, fechava, subia len-ta-men-te na charrete de novo. E os dois fizeram isso até que a nona porteira tivesse sido aberta e fechada.
Esse seria um número que ela não esqueceria. Minha mãe teve que aguentar não só nove meses para que eu nascesse, mas praticamente na hora de eu nascer, pelas mãos da parteira em Pedrinhas Paulista no interior de São Paulo, ela teve que atravessar nove simbólicas e difíceis porteiras para chegar ao hospital da cidadezinha.
Essa história não saiu mais da minha cabeça. Eu sempre pensei nela com muito carinho e na noite que fui para o hospital desesperada, porque achava que Ângelo estava quieto demais na barriga, eu pensei nas nove porteiras de minha mãe e enfrentei as minhas. Eu sabia que se ela havia conseguido lá na sua vida simples no meio da roça, em cima de uma charrete naquela noite de 18 de março de 1971, eu certamente me sairia bem no carro possante do meu Renato e no hospital de primeiro mundo da Suécia de 2007.
(Minha mãe Maria e eu, depois de tantas porteiras, juntinhas de novo no último Natal no Brasil, dezembro de 2008)
Desde aquela conversa e desde que atravessei minhas nove porteiras eu tenho entendido bem melhor os mistérios que rondam o universo da maternidade. Foi com isso que fiquei refletindo há alguns dias, quando presenciei a cena entre uma mãe e um filho aqui na Suécia.
Numa dessas tardes do fim do verão, estava eu com Ângelo num parquinho em frente à praia, depois de voltarmos da escolinha. Ele e duas dezenas de crianças brincavam, pulavam, escorregavam, se mexiam na areia, enquanto tinham sobre si os olhares atentos e amorosos de seus pais e mães.
Numa dessas tardes do fim do verão, estava eu com Ângelo num parquinho em frente à praia, depois de voltarmos da escolinha. Ele e duas dezenas de crianças brincavam, pulavam, escorregavam, se mexiam na areia, enquanto tinham sobre si os olhares atentos e amorosos de seus pais e mães.
No sobe e desce, desce e sobe, um dos loirinhos de olho azuladíssimo, um suequinho minhonzinho de um ano e meio talvez, cuja mãe o segurava pelos bracinhos, tropeçou na escada do escorregador e foi com tudo de boca nos degraus. No mesmo instante, até mesmo antes que ele chorasse sua jovem e também loira mãe soltou um lamento:
- AAAAAiiiiiii.... gemeu ela muito alto.
O menino chorou muito com um pouco de sangue na boca e, embora seu choro fosse também de dor, ele não era mais intenso do que aquele gemido de sua mãe e do que os sons que ela continuava emitindo baixinho.
Tentando consolá-lo, ela abraçava, beijava e dizia para si mesma: "Aiaiaiai". Fiquei ali sentada, quase numa atitude calma, olhando para ela, enquanto suas amigas já vieram acudi-la rapidamente. Não me movi, porque tudo foi rápido e o pouco que poderia ser feito já estava sendo, mas o olhar daquela jovem mãe para seu filho, o jeito como ela tentava se desculpar acariciando-o me deixou comovida. Me deixou ao mesmo tempo com pena dela, pena de mim mesma e pena de todas as mães do planeta.
Eu pensei muito na idéia de "culpa" naquela tarde. E pensei na culpa que, aos meus olhos, toda e qualquer mãe carrega. A culpa que aquela mãe sueca carregou naquela tarde não era diferente da culpa que vi minha mãe mineira- brasileira carregar sua vida toda. Não era também distante das minhas culpas e das que vejo minhas amigas, também jovens mães, enfrentarem diariamente.
(Eu e Ângelo no primeiro passeio com nossa bike Madalena, eu culpada por não saber andar direito e com medo de acabar derrumbando meu menino, Malmö, inverno de 2008)
No meio de tanto amor e dedicação delas há sempre o lamento do que poderia ter sido feito. Elas assim o fazem, e também o fazem suas mães e as mães de suas mães. É assim que tenho ouvido desde há muito tempo.
E então eu pensei que ser mãe, entre tantas coisas maravilhosas de serem ditas, é algo entre saber trabalhar com a própria culpa. Com a culpa produzida por fatores externos e pela culpa que a gente mesma cria.
Um filho que escorrega no parquinho é algo quase sempre fora do nosso controle, mas nós nos sentimos culpadas. Culpadas porque tínhamos que ter visto antes do bichinho ou da bichinha cair e, claro, tê-los apoiado a tempo para que não houvesse choro nem dor.
Do mesmo jeito que aquela jovem iludiu-se aquele dia e culpou-se crendo que poderia ter evitado o quase inevitável eu, sinceramente, acho que muitíssimas de nós, fazemos isso quase diariamente. Fazemos até mesmo antes daquele momento do "empurra!", "empurra!"
Já na gravidez entre mudanças inexplicáveis e milagrosas no nosso corpo a gente sente culpa: porque tem medo do que virá, porque engordou demais ou de menos, porque talvez aquele remedinho extra que tomou possa causar algum problema na formação do bebê...
(Minha super amiga maluquinha Luciana Dias, de barrigão e com medo de não ser boa mãe, janeiro de 2009)
A gente se culpa os nove meses porque ora quer desesperadamente o filho, ora quer manter a mesma antiga vida para sempre. Se culpa porque não consegue amamentar ou, se consegue, porque tem pouco leite, ou talvez tenha leite demais. Se culpa porque a comidinha estava quente e queimou a boquinha dele ou dela, porque não acertou no prato que eles queriam naquela tarde ou porque tem que dizer não a um sorvete pedido com carinha de pena.
A gente se culpa a infância toda dos filhos e, até onde observo, a vida toda deles. Se é preciso deixá-los na escola ou com a babá, se não vão tão bem em matemática, se um amiguinho deu-lhes um empurrão ou se a merenda da escola não é tão saborosa quanto deveria ser.
A gente se culpa porque os filhos não se casam, ou se eles se casam, porque as vezes não são totalmente felizes, ou porque sentirão dores e terão dificuldades quando forem ter seus próprios filhos. A gente se culpa por cada noite de sono perdida, pelas doenças bobas e pelas sérias, pelas viagens e trabalhos mal sucedidos e por sonhos que filhos e filhas fizeram em vão.
A gente também se culpa porque quer estar sozinha e não quer barulho. Se culpa porque preferia ver um filme, sair com as amigas a estar em casa cozinhando e trocando as fraldas. Se culpa porque queria voltar a namorar o marido como antes, porque queria poder ter o direito de ser egoísta, sem achar que haverá um dedo apontando para seu nariz.
(Eu boba de amores por Ângelo, curtindo alguns dos momentos mais maravilhosas da maternidade, Malmö, noite de Natal de 2007)
Hoje eu acredito que uma mãe ama tão intensamente quanto se culpa. Essa foi a minha leitura daquela tarde de sol na tão distante Suécia. Esse foi o dia em que vi, pela primeira vez, que as mães "emotivas, intensas e exageradas" brasileiras ou latinas não são lá muito diferente do que de fato o são as mães "controladas, calmas e frias" suecas.
Isso porque a maternidade é de fato uma experiência transcendental. Ela transcende tudo o que a gente imagina poder um dia sentir e ser na vida. Isso inclui ser a mais cheia de amor possível, desprendida, corajosa, doadora, carinhosa, meiga, engraçada e cheia de energia... Inclui também ser neurótica, controladora, medrosa e, entre tantas outras coisas extremamente humanas, totalmente culpada por tudo o que já foi e pelo que virá.
(Minha queridíssima amiga Mafer curtindo seu primeiro momento com o segundo filho Miguel, ainda sem pensar na culpa de dividir o amor que dava para João, seu primeiro, março de 2009)
Talvez todo esse drama nada paradisíaco se explique porque onde há o laço materno há sempre uma mistura muito forte de sentimentos bons e ruins. E talvez porque para ser mãe é preciso ser mulher e porque, sendo mulher, a gente esteja sempre muito perto de achar-se culpada. A diferença entre a culpa sentida antes de ser mãe é que, na pele dessa, a gente não se conforma por ainda sentir culpa. Todos os problemas deveriam ser resolvidos, todo o paraíso foi conquistado não foi? Então por que podemos ser tão ingratas e não ser apenas agradecidas o tempo todo?
Na minha pouco experiente opinião porque é possível viver sim o paraíso em milhares de vezes na qual se está com nossas crias. E porque não sabemos mais nos imaginar sem elas. E porque a vida sem elas passou a ser uma página linda, mas da qual parece ter valido a pena abrir mão. E, ainda, porque ao mesmo tempo que se sente a "Magnificat" uma mãe também se sente a responsável por ser expulsa desse próprio paraíso.
Eu não sei direito, mas vou cá viajando... embora grande parte da culpa das mulheres-mães venha delas mesmas, provavelmente venha também grande parte de fora, daquilo que as outras mulheres, outras mães e os Adãos esperam dela. Ter que negar diariamente todas as outras faces de Eva que se tenha e mostrar apenas aquela que parece viver eternamente num paraíso é um peso para qualquer mulher.
Eu não acho que seja preciso padecer no paraíso para ser mãe, mas para isso é preciso atravessar as nove porteiras que nos esperam todos os santos dias, todas as santas horas e todos os santos minutos da nossa santa vida sem tanta culpa. Talvez seja preciso começar aceitando nossa humanidade e a humanidade dos outros, aceitar que qualquer papel que representemos na vida é cheio de ambiguidades, inclusive o papel de mãe.
Comentários
beijo
Volto depois pra ler o resto do post, estou indo a prestacão até me acostumar com a 'nova' visão.
Beijo
Pra mim a vontade imensa de acertar que cada mae tem jà as livra de toda e qulquer culpa.
Existe uma coisa "extra" em uma mae. Existe aquela doaçao extra, aquele entendimento extra, aquela paciencia extra. Talvez por estarem mais perto da perfeiçao do que qualquer outro elas se culpem por ainda nao terem chego là.
Pra mim a vontade imensa de acertar que cada mae tem jà as livra de toda e qulquer culpa.
Existe uma coisa "extra" em uma mae. Existe aquela doaçao extra, aquele entendimento extra, aquela paciencia extra. Talvez por estarem mais perto da perfeiçao do que qualquer outro elas se culpem por ainda nao terem chego là.
Lindo texto, como sempre!
Deixei para ler hoje, na hora da nova novela, pois não quero mais acompanhar aquelas baboseiras, pois blogs como o seu acrescentam muito mais à minha cabecinha.
Sua mãe, guerreira e mineira que nem a minha, atravessou as 9 porteiras do sítio e mais 9, talvez dos desafios da vida. E você também, enfrentou e enfrenta a cada dia porteiras invisíveis nesta terra linda e rica, mas tem se saído bem, muito bem, sozinha com seu maridex e o filhote.
Assim como eu, sempre preferi cuidar de meu filho sozinha, parando de trabalhar, me dedicando a ele e ao marido, longe sempre da família, nunca gostei de morar perto, minha privacidade e de minha família eram coisas absolutamente necessárias para a solidificação de nosso amor.
Se eu acertei ou errei não sei, só sei que tudo que fiz foi com boa intenção de acertar sempre e coloquei meus melhores sentimentos e minha força de amor em tudo, mas a sensação de será que poderia fazer melhor existirá sempre, acho que é assim mesmo, a cabeça de nós, mulheres, mães e acima de tudo humanas.
Ahh, deixa eu parar com meu blá blá blá, a filósofa aqui é você, uai!
beijocas cariocas
E mãe sem culpa, minha filha, é mãe morta! rsrsrsrsr
Bj
ahhhh... eu nao sei se vc vai ficar bravinha comiga, mas eu indiquei faz tempinho um texto seu pro concurso da lola, que vai concorrer com esse meu okey??? sobre aquele do ter ou nao ter filhos!
beijocas
anjinha, voce tem razao!
eu sempre que olho para uma mae fazendo besteira, sabe? tipo pegando no pe do filho, sei la o que, eu penso: no fundo ela quer mesmo fazer o melhor que pode! elas dao mais do que precisam, mais do que podem!
e isso ja e mesmo estar la perto de merecer o paraiso!
ahhh! eu nao sei porque mas o seu link tinha saido daqui e inclui de novo!
ta na cara que voce e maezona! voce e maezona ate com quem nunca viu na frente, como eu? imagina como nao e carinhosa com o filhao?
e eu sempre digo as minhas amigas que me perguntam: mas voce acha sonia que seremos assim, maes que darao traumas aos filhos?
e eu respondo: pode ter certeza!!!
daremos outros talvez, diferentes dos que recebemos, mas sim.. toda mae e passivel de errar muito... e isso nao e facil de aceitar... dai a culpa!
mas Lilas e tao bonito que toda mulher atravesse essas invisiveis - MUITO BEM DITO - porteiras sem que ninguem, nem mesmo os filhos reconhecam um dia nao e? e bonito, sofrido e admiravel!
obrigada por sempre filosofar comiga sua carioca danada!
ADOREI! Mae sem culpa e morta! haha...
sim Ines e Morta se nao tiver culpa!
fico super feliz que vc tenha gostado, afinal, como disse, tem trechinho que me inspirei na em coisas que vc disse no seu cantinho... beijos
Não sabia q a Lu tinha tido baby! Perdi contato com tanta gente querida...snif!
beijocas e saudades
Até chorei.
Beijos.
Seu texto é lindo, delicioso e muito lúcido.
Beijos.
coisa boa esse concurso da Lola, não? Agora conheço esse texto lindo e estou aqui inspiradíssima para escrever um outro sobre a maternidade vivida pela minha própria mãe.
Prazer em "te conhecer"!
Abçs,
Rita
Era uma dor dentro da vagina, parecia vir mesmo de lá do útero. uma fisgada/contração...não sei como descrever, mas chego a sentir quando penso nela.
Acontecia toda vez que eu achava que o meu pequeno estava em alguma situação de risco ou quando algo realmente acontecia. Sabe aquela virada brusca quase escorregando da cama?
Era uma dor da culpa? acho que sim...ainda hoje, ele já grandão, de vez em quando quase sinto aquela dor.
Mas acho que a chave para entender a dor e a culpa das maes é a serenidade da sua mãe. Você pediu para ela contar como foi o parto. Ela não contou o parto, ela contou a aventura das nove porteiras. Provavelmente ela teve um parto com dor, mas não foi uma dor importante...mais importante foi a viagem para que você nascesse.
Ou sei lá...foi isso que me veio a mente.
adorei te conhecer...esse concurso da lola tá realmente incrível!
Do parto do Renato,meu filho,seu marido o que me marcou muito foi uma frase que uma enfermeira me disse na hora em que eu sentia fortes dores " Filhos são jóias raras" e eu completei: E caras !!
Beijos !!