(Kym and Rachel, entre o amor fraterno e seus desdobramentos, "Rachel getting married")
Com Kym (Anne Hathawa) e Rachel (Rosemarie DeWitt), ambas protagonistas do drama "Rachel getting married"(O casamento de Raquel), filme de 2008, mas que eu só tive o prazer de ver (e não tirar da cabeça) esta semana pela tevê a cabo, não é diferente.
Kym e Rachel são irmãs e se reencontram num momento no qual suas vidas estão em caminhos, se não opostos, extremamente diferentes. O casamento de Rachel com um doce e admirável músico é a razão de fazer com que Kym seja liberada da clínica de rehabilitação onde está internada. Sendoa ssim, os altos e baixos desse reencontro se darão durante toda a festa de casamento a qual, diferentemente das nossas tradições brasileiras, são festejadas durante vários dias.
Após três ou quatro dias na mesma casa convivendo a família do noivo, a família da noiva e os amigos mais próximos eu penso inicialmente que haverá motivos suficientes para que um dos parceiros desista do investimento, mas não é o que acontece.
Neste inspirador filme os medos das duas irmãs são confrontados. Ao contrário do que o lindo reencontro das duas deixa entrever sobre a relação mantida por elas, quando a película avança vemos como o amor foi na verdade sendo carcomido por sentimentos inúmeros construídos ao longo de suas vidas. Ainda há amor. Ele é o motivador do encontro, mas como não cair em suas armadilhas familiares novamente?
Os ciúmes e a disputa pela atenção da família levam as duas a remexer em baús de memória adormecidos. Kym ainda se comporta como a menina mais nova, a irresponsável, a maluca e destemida porque parece precisar provar para si mesma que suas escolhas não estão aquém das feitas por sua irmã. Rachel, por mais que ame a irmã, tem raiva e mágoa por ter sido sempre deixada "de lado" pelo pai e pela mãe. Por sempre ter sido a filha certinha e ter estado ao lado deles sente que o amor foi dedicado apenas a sua irmã. Em suma, elas continuam disputando amor e atenção assim como faziam desde menininhas. Os complexos assumidos ao longo de suas vidas, seja os imputados pelos pais ou por elas mesmas, fizeram com que fossem cada vez mais agindo conforme os papéis dados há muito tempo a cada uma e este agir conforme o esperado parece esgotar as energias de ambas irmãs.
Além disso, o ciúme acaba sendo estopim para mais sofrimento porque, quase sempre, fica escondido na agressividade. A proximidade da festa longa de casamento acaba ajudando a perceber o que Lacan antecipa em Os complexos familiares: não é a rivalidade entre os membros da família o causador maior do ciúme, mas "a agressividade máxima que pode ser encontrada nas formas psicológicas da paixão." Em outras palavras: a paixão que une os membros da família é a maior causadora de ciúme. É o amor que une Kym e Rachel o propulsor do ciúme, mais ainda do que o é a disputa.
As duas mulheres na faixa dos trinta anos ainda lutam para resgatarem-se a si mesmas. Desejam ardentemente serem elas mesmas, mas como serem elas mesmas se todas as vezes que se reencontram são os laços familiares a ditarem como agir e como pensar?
Uma das frases mais fortes do filme é dita por um colega do grupo de rehabilitação de Kym e também o amigo mais próximo do noivo: quando alguém sai de uma rehabilitação a última coisa que quer fazer é enfrentar sua família. Vê-la é um sofrimento. Encará-la e ter que suportar suas manias e sua forma de encaixar a pessoa em seu contexto é um desafio imenso demais para quem ainda não dá conta de seus próprios desejos como é o caso da pessoa viciada.
Até mesmo o cuidado exagerado e o amor do pai é interpretado pela mais nova como um peso. Até mesmo a dor do outro é sentida como desprezo às próprias dores. Creio que "Rachel is getting married" pode ser visto como uma análise muito bem feita sobre os laços familiares, como eles ajudam a construir, ainda que desconstruindo, o sujeito. Pode, ainda, servir como uma crítica aos indivíduos enquanto pai e mãe e como eles fingem assumir, mas não assumem a tarefa de educar e de cuidar porque isso tudo dá trabalho demais e em muitos casos preferem continuar agindo feito crianças.
Com o desenrolar da película nós acabamos por descobrir o verdadeiro drama da família. Percebemos também como ele está intrinsecamente relacionado à irresponsabilidade da mãe (Debra Winger) assim como sua maneira ausente de lidar com os filhos. Daí o divórcio, mais dor, mais ausência, mais falta e carência para as meninas que cresciam em meio a uma família desastrosa. Resta depois disso um pai amoroso (Bill Irwin que está demais nesta figura!) e incorrigivelmente dedicado tentando refazer os laços desfeitos.
Talvez o filme ainda tenha como objeto de crítica a sociedade americana como um todo. Aos seus valores volúveis (construídos na imagem da mãe quem deixa, por exemplo, a filha no dia do seu casamento para arranjar suas malas e a do atual marido para uma viagem de negócios) mas sua mania de tentar parecer serem os portadores das famílias mais lindas e perfeitas do planeta. Vejo isso na comparação entre a branca e americanamente triste família de Rachel em contraste com a família afro-descente, cantarolante e feliz do noivo Sidney (o músico e vocalista Tunde Adebimpe).
É ainda uma crítica ao egocentrismo inato do ser humano, mas também uma luz sobre suas qualidades. Saindo de seus lugares as irmãs conseguiriam perceber que tudo não gira apenas ao seu redor. Há o outro. Há o sofrimento do outro e há a maneira como este outro reage às nossas acusações. O outro não é só o algoz é também nossa vítima.
Apesar do tom dramático das discussões o filme é MUITO BOM! Assim dito em legras garrafais. É ainda agradável de se ver, pois o experiente Jonathan Demme (o mesmo diretor de "O silêncio dos inocentes" e o inesquecível "Fildadélfia"), consegue criar uma atmosfera um tanto mágica seja nos momentos em que o passado não atormenta a relação das irmãs e vemos apenas a pureza que as une, seja na beleza das músicas entoadas ou tocadas o filme todo pelo noivo, seus familiares e seus amigos músicos. A trilha sonora é magnífica e acordei no domingo ouvindo Neil Young só para sentir a atmosfera do filme de novo.
Se tiverem oportunidade de ver (esta semana está na programação da NET) vale muito a pena inclusive porque no final, com as declarações tão genuínas dos noivos e as pessoas próximas a eles, a gente continua acreditando que casar e constituir família tem sim sua magia de ser.
...
* Lacan, Jacques, Os complexos familiares na formação do indivíduo, Jorge Zahar Editor, 1984.
Comentários
Da vontade sair correndo pra locadora...
beijos
Eu vi, eu vi este filme há mais ou menos 1 mês e gostei muito também, mas peguei na locadora.
Realmente é um filme que mexe com as emoções da gente, principalmente quem tem algum parente envolvido com drogas ou bebidas. E a atuação de Anne Hathaway está excelente.
Gostei muitcho e rrrrrrecomendo também.
beijocas cariocas
Acho que lidar com os papeis que assumimos - ou nos foram atribuidos - pela familia é duuuuro.
brigaduuu!
beijo!