(Ilustração de Laia Feliu Aguirre)
Semana passada eu estava tagarelando sobre tudo com minha amiga Jéssica, quando no meio da conversa ela me disse:
- ... "e, então, é preciso marcar uma consulta com a ginecóloga..."
Ginecóloga? Que estranho, pensei, mas fingi não perceber e deixei que ela continuasse.
Mais adiante, num tema mais moderninho, ela continuou toda posuda dizendo algo mais ou menos assim:
- "sim, eles vão modernizerar tudo..." (Tô inventando, mas foi parecido com o que eu já tinha ouvido ela fazer que é misturar as línguas, como nesse exemplo: modernisera do sueco com modernizar, do português.
Modernizerar? Uau! Isso é bem estranho, pensei, e não me contendo eu disse:
- Acho que você tá esquecendo o português, porque tá misturando as duas línguas o tempo todo e às vezes diz uma palavra na forma errada.
- Quem eu? Perguntou ela toda inocente. Nossa... não percebi! O que foi que eu fiz?
Expliquei e aí ela arrematou:
- É... nossa... Mas você sabe que português sempre foi o meu forte na escola...
Não me aguentei e me esborrachei de rir.
- Era seu forte? háháhá...
E ela completou tristonha
- É... quer dizer... era! E se acabou de rir também.
(Jéssica e seu precioso Nicky, aproveitando um piquenique comigo e Ângelo, Slotspark, Malmö, maio de 2008)
...
Tem uma coisa que você com certeza vai perder um pouco se decidir viver em outro lugar por um tempo. E piora quanto mais tempo você passar fora: a sua língua materna.
Eu e minha amiga Jéssica somos prova disso. Ela é uma brasileira viajadíssima, fluente em sueco, italiano, inglês e português, com vocabulário em português bastante rico, uma super estudante de psiquiatria na Universidade de Malmö. Pra ajudar no seu multiculturalismo, a mãe é peruana e o marido, grego. Ela está fora do Brasil há muitos anos e já morou na Itália, Inglaterra e Irlanda, depois de ter se mudado pra cá.
Eu não tenho esse gabarito todo não, mas em minha vida toda nunca tive nenhum, "nenhunzinho" problema sequer com português. Eu era bem razoável em matemática e afins, mas eu era o xodó (é com x ou ch?) da professora de português, da de geografia e da de artes. E isso me ajudou até numa carreira como professora e corretora de redação.
A verdade é que, desde que vim pra cá, meu lindo português, alto, moreno, pele clara, de lindos olhos amendoados, está virando um portuguesinho baixinho, bem gordinho, com uns dentes de ouro no meio dos bigodes longuíssimos. Um português nada charmoso.
Escrevo os posts sempre muito rápido e quase sem correção, então deixei passar erros "bestíssimos", trocando x por ch, coisa que nunca - never!, jamais em tempo algum! - aconteceu antes, mesmo eu escrevendo voando. Inventei palavra misturando português com espanhol, inglês e sueco e só percebi depois de me chamarem a atenção. Mas toda vez que a gente que vive esse dilema da "perca" da língua tenta se explicar o pessoar daí do Brasil acha que é coisa de gente fresca ou, pior, coisa de quem sempre escreveu errado mesmo, mas agora aproveita a deixa e comete um montão com boas explicações. Pode até ser em alguns casos, mas eu juro que não era o meu.
Eu era uma moça bem intencionada e sempre amei escrever corretamente ou passar a caneta nas redações e colocar a forma correta ao lado do texto do aluno... mas ouvindo sueco na rua, TV, rádio, lendo no jornal, revistas, correspondências etc e tentando falar o pouco que consigo eu tô mais confusa que o cavalo do cego no meio do tiroteio. Além disso, tem o inglês que praticamente é a língua com a qual me comunico aqui. Português eu falo com Ângelo (pá, bá, má), com Renato e algumas valiosas e poucas amigas, de modos que meu purtuguês charmosão tem deixado saudades.
Isso talvez possa ser contornado com boa leitura na minha língua (por isso catei minha "Montanha Mágica, do Thomas Mann, e recomecei a leitura que sempre quis terminar), mas se você se muda sua vida é cercada de obrigações e aprendizado de tudo em uma nova língua, então, um mix muito grande vai acontecendo e você se vê criando palavras o tempo todo...
Se esquece o sentido de uma palavra, sua mente busca muito rápido, como num grande fichário, um sinônimo em alguma língua que você aprendeu antes. Por isso, até mesmo línguas que estudei por um tempo, mas não sei porcaria nenhuma, aparecem nas frases, mas totalmente sem querer. A gente mistura de tudo e inventa de tudo! E perde um pouco da língua original. Minha adorável amiga Inara, inteligentérrima, que tem o prazer de viver em Paris, me disse que ao escrever seu doutorado ela se viu com um texto escrito em várias línguas, com um misto total de palavras e sentenças em francês, inglês, alemão e português.
Essa é uma desvantagem de se aculturar, se a gente pensar por esse prisma. Apesar de não ser o que a gente deseja, quando tenta assimilar outra língua, não me parece que haja muita saída. Tenho amigas com alto nível escolar que viveram fora por uns tempos e me escrevem emails com erros "tipo de quinta-série", "manga"? sem "perseber". Outras, como umas italianas por exemplo, que vivem no Brasil há uns vinte anos, até hoje falam italianês porque morrem de medo de esquecer sua língua materna. Detesto a idéia de não ser mais tão boa em português, mas, ao menos por um tempo, me parece preciso não me preocupar tanto com isso, senão ficarei sempre no meio do caminho.
O mesmo tem acontecido com Ângelo. Antes da escolinha, o Dagis, ele vinha falando muuuitas palavras em português, acho que umas vinte e poucas, e algumas frasesinhas. Agora com a suecadinha e professoras falando sueco o tempo todo com ele na orelha dele, ele volta de lá fazendo biquinho e dizendo: "ijjhhhhh". Ele está soltando muita coisa em sueco e tentando fazer os sons característicos dos escandinavos, mas passou uns dias sem falar muita coisa nova na sua língua. Aos poucos, ele parece estar digerindo, assimilando e se arriscando novamente. "Ba-ta-ta" foi o que ele disse hoje, com todas as letras, enquanto eu cozinhava seu almoço.
Vê-lo tendo contato com três línguas ao mesmo tempo e tentando se expressar é incrível. Mostra como somos capazes de tanto, ainda tão cedo. Às vezes ele fala a mesma coisa duas vezes, em sueco e português: "Né! Nã!" (Nej, não), "épê" (äpple), "açã" (maçã). Tem hora que arrisca até um inglezinho básico e se despede, por exemplo, usando as três línguas ao mesmo tempo: "Táu!", "Redô!", "Babá!". Ele talvez demore mais a falar fluente o português, acho que é uma perda temporária, mas necessária, ao menos no caso dele. Já no meu não posso garantir que eu não renda risadas melhores ainda do que a minha amigona Jéssica me deu aquele dia.
Por ora, prefiro anotar, morrer de rir e escrever posts. E, por favor, passem a caneta vermelha em mim, quando eu publicar erros por aí, mas com jeitinho, senão eu choro. Eu e a língua portuguesa agradecemos.
Comentários
Ah, tem um presentinho prá vc lá no meu blog....
bjs
Andréa
"A perca" foi ótimo!!!
Sonia, querida, você é uma das melhores, senão a melhor que conheço nesta blogosfera que escreve textos tão bem na língua pátria e lindamente na expressão de sentimentos.
Um errinho ou outro, até troca de letras, como pode acontecer com as pessoas como você e sua amiga Jéssica, é prá lá de compreensível, afinal é muita língua falada e ouvida por dia. Como há um processo de esquecimento e confusão, natural, vira um tipo de neologidmo.
Acho, no entanto, louvável o fato de vc estar ensinando ao filhote sua língua, pois muita gente quando vai prá fora não faz isso, por preguiça, aí a criança nunca interage com os familiares quando vem para o Brasil e com o tempo, acaba não se interessando muito pelos parentes queridos, como avós, tios e primos e acabam perdendo a identidade com o país.
Todas nós, de vez em quando, erramos algumas palavras,esquecemos como se escreve ou trocamos por outra parecida, mas que isso não seja empecilho para deixarmos de escrever nossos sentimentos, vivências ou abobrinhas até.
Fica muito feio é quando uma palavra difícil e que na dúvida é sempre bom consultar o "pai dos burros", como por exemplo a palavra Sobrancelha que vi noutro dia num blog de uma pessoa muito esperta, inteligente e antenada, escrito como chamada de seu post - "Sombrancelhas". Aí dói!
Ainda bem que eu não precisei corrigi-la, pois uma outra moça, educadamente, deu o toque e ela agradeceu muito e foi bastante simpática corrigindo em seguida.
Não deixando entretanto de escrever erradamente na resposta que ela não ficava brava não, pois "sou mancinha, mancinha"! Tóimmmmm!
Aí é assassinato mesmo da língua, porque a pessoa não está nem aí para se corrigir, prestar mais atenção ou até passar o tal corretor ortográfico no texto antes de postar, etc e tal.
E o pior, várias outras moças que lá fizeram comentários também, não perceberam o erro e repetiram a tal palavra como ela.
Noto que a galera mais jovem não tá nem aí prá isso e maltratam mesmo o pobre português.
Você é ótima! Mesmo quando escreve jaboticaba como no texto abaixo e que eu achava que estava errado, pois sempre escrevi jabuticaba, mas consultando o dicionário vi que podemos escrever nas duas formas.
Eu não sabia disso, fiquei sabendo por você.
Bah! Chega! Você escreve bem pacas, pronto! Falei e beijo carioca.
Só pra vc ficar ainda mais feliz, a partir de 2009 entram em vigor as novas regras ortográficas da Língua Portuguesa.
Se prepare para ser mais estrangeira ainda!
Bjs,
Tia Dri
A perda da língua é a coisa mais natural do mundo ! :-D Eu nasci em Angola, mas fui bebé para Cuba, e quando tive 3 anos, fui para a escola francesa. Desde essa idade, falei as três línguas. Para criança é mais fácil, o cérebro se prepara para mais línguas mais tarde com mais facilidade.
O problema é que misturamos tudo e fazemos (meus irmãos e eu) galicismos em português, anglicismos em francês, lusitanismos em inglês, pra não dizer que quando falamos, saí uma frase que nem esperanto :-D
(Mas é divertido e parece que cientistas descobriram que quem fala várias línguas tem menos riscos de virar demente ;-))