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A história de um amor côncavo e de outro convexo

("Equestrienne", Marc Chagall, 1931)


Sonildes nunca fora alguém que se decidisse fácil pelas coisas. Não que ela não soubesse exatamente do que gostava, ela sabia, mas gostava de muitas coisas. E de coisas normalmente muito diferentes uma da outra. 

Entre suas dúvidas mais cruéis sempre estava a dúvida do que comer num restaurante, por exemplo. Sonildes ficava horas tentando escolher algo no cardápio e olhava com aquela cara de "Ó... não acredito! O seu parece mais gostoso que o meu..." para quem estivesse com ela.

No trabalho e nos estudos, o mesmo. Sonildes era garçonete de uma grande empresa de eventos e vivia fazendo "bico" nos fins de semana. Não se tratava apenas de ganhar uns trocados, mas de fazer algo diferente e divertido. Durante o dia dividia o tempo terminando um curso de psicologia e trabalhando como suporte técnico numa empresa de informática. 

Era exatamente nesse seu lado cheio de incertezas que Sonildes pensava, enquanto ensaboava o cabelo durante o banho, naquele dia. Mirando seu reflexo no espelho do outro lado do boxe, ela se lembrou de que Brasil não havia notado que ela cortara o cabelo no dia anterior. Apesar disso, Sonildes não estava chateada. Ela sabia, Brasil era assim. Desde que o conhecera, quando ele ainda era apenas o professor Digleíson da Silva, e não o famoso Brasil que viajara mostrando sua ginga na capoeira, o moço era o tipo desligado. Desligado, mas amoroso. E era isso que importava, pensou ela, enquanto sentia a água descendo pelo pescoço.

Amoroso, alegre, falante e gente boa. E bonito. Sim, aos olhos dela, Brasil era de parar o trânsito. Cabelo rastafari, pele morena queimada do sol, olhos esverdeados e corpo forte da luta. E o sorriso? Uhl! Brasil fazia inveja. Todas as amigas de Sonildes se derretiam por ele e toda mulherada na rua dava uma viradinha para conferir o material. E a maior qualidade de Brasil: era apaixonado por ela. E queria casar. 

Mas como em todas as vezes em que estava num maravilhoso restaurante, com um prato quase perfeito a sua frente, a moça cheia de incertezas desejava o prato que ela não havia pedido. E o prato não pedido, nesse caso, era Suécio. 

Foi numa noite de verão que Sonildes foi servir mesas numa glamourosa festa das maiores empresas de marketing do Rio de Janeiro. E foi servindo uma delas que seus olhos encontraram os olhos de Suécio. E seu corpo conheceu outro caminho que não fosse o de Brasil. Era impossível não ter se apaixonado! Pensou ela. E da panacota de côco eles passaram a encontros escondidos, recheados de muito mais. 


("O beijo", detalhe, Klimt, 1937)

Suécio percebia tudo em Sonildes. Se estava triste ou feliz, se queria falar ou calar-se. Em Suécio ela tinha mais que um namorado sorridente e falante, ela tinha alguém para elocubrar com ela as teorias psicanalíticas de Jung e Melanie Klein. Sim, Suécio gostava muito de ler a respeito, porque sua mãe era médica psiquiatra e o pai professor de filosofia. E ele também era ótima companhia nos museus e nos jantares, os dois sempre tinham algo muito interessante para falar. Um pouco diferente do adorável Brasil que, para começar, gostava demais de um bom churrasco na sacada do apartamento dos amigos. E o assunto, sempre muito animado, girava em torno de dança, luta, futebol e música. 

Não que Sonildes não gostasse. Como falei, ela adorava. O problema é que ela também adorava ser outra Sonildes. E esquecer quem estaria nas finais do campeonato brasileiro, quem morreria na novela das oito ou das desgraças dadas do noticiário. É verdade que, muitas vezes, Brasil tinha conversas do tipo "cabeça" e Sonildes adorava, mas, apesar de amar o super astral dele e dos amigos, ela se sentia meio rainha podendo viver anonimamente ao lado de Suécio.

E a discrição, tranquilidade e ponderação de Suécio lhe davam uma certeza que ela nunca sentira antes. A certeza de que não poderia ser feliz apenas estando ela com Brasil. Ocorre que, de vez em quando, a casa de Brasil se enchia de amigos não muito amistosos. Vez ou outra eles pareciam tão agressivos que Sonildes não se sentia sempre segura nem mesmo na presença de Brasil. Sem contar que, por natureza de seu trabalho, Brasil era mais o tipo instável financeiramente, mas mesmo assim ele vivia cantarolando um futuro que provavelmente nunca aconteceria. 

Sonildes o amava como se tivesse nascido já colada em seu corpo e por isso fingia com ele que todos aqueles sonhos quase adolescentes iriam mesmo um dia acontecer. 

Com Suécio ela sentia diferente. Sem nunca ter sido apresentada a amigos ou família de Suécio, ela não precisava ser o que não queria, quando não queria. Ela era apenas ela. Ela e Suécio, o amante alto, loiro e de olhos azuis pelo qual suas amigas também morreriam, mas de quem nem faziam idéia que existia. Não! Viver sem esse lado, essa conversa profunda e gostosa, essa paz e esse mundo, eu não mais poderia! Disse Sonildes em voz alta para si mesma, segurando a toalha nas mãos. Impossível!

E se isso lhe parecia absurdo e Suécio havia lhe dado tal certeza, ele não conseguira dar a ela outra: a de que pudesse realmente viver feliz e completa ao seu lado, sem o amor e o carinho de Brasil. Acontece que, vez ou outra, Suécio lhe parecia frio, distante e calado. E, nesses dias, Sonildes sentia tanta falta da presença de Brasil que lhe ardia o peito. Tão centrado nos problemas da empresa e nas leituras, ela não o sentia tão presente quanto queria. E a solidão também poderia se transformar num problema, com o passar do tempo, já que Suécio não era o tipo de viver ao lado de amigos e sua família era o tipo toda independente. Cada qual no seu lugar, tomando conta de sua própria vida.

Isso, da mesma maneira, lhe parecia horrível de se suportar e fora de questão. Como poderia ela viver sem o toque e o cheiro de Brasil? O que faria com todos os dias em que se deliciava em sua companhia, tomando sol na praia, falando de coisas suaves e gostosas, ouvindo e dançando dentro da água, como se fosse o último dia para ser feliz? Impossível. 

E acontece que a dúvida de Sonildes caminhava assim. Entre um banho e outro, ela esquecia das indagações e tratava apenas de curtir a companhia de um e de outro separadamente, sem pensar que haveria de se decidir um dia. Durante os banhos, ela mergulhava novamente no seu mundo impenetrável particular, onde nem Brasil, nem Suécio haviam chegado. Às vezes Sonildes gostava de fantasiar que podia viver com um e outro ao mesmo tempo. Ter tudo de bom de um e tudo e ótimo de outro. E ela sorria para si mesma. Ou quem sabe um dia aparecesse um terceiro... E foi sorrindo que Sonildes amarrou o laço do roupão branco, pôs os chinelos macios e foi se maquear para mais uma noite gostosa com um de seus dois amores. 


("Esperança II, detalhe, Klimt, 1907-08)

Comentários

Anônimo disse…
Adorei :-)
Anônimo disse…
Adorei também e fico imaginando uma continuacao... o que Sonildes faria se Suecio em profunda crise financeira a pedisse para ficar pra sempre e ao mesmo tempo Brasil apenas lhe prometesse o sorriso e a alegria caso ficasse com ele?
Beth/Lilás disse…
Ah, Sonildes, como o seu coração é dividido por esses dois amores! Sonildes é uma mulher de sorte, pois pode flutuar entre esses dois mundos, quer dizer, amores, mas sabe, com certeza, qual o que está lá dentro enraizado e é o verdadeiro amor.
Deixa ela assim por enquanto, afinal é jovem e tem o mundo pela frente e muitos amores virão ainda.
Talvez um dia ela volte para o Brasil amado, por enquanto Ele é quem está ainda muito imaturo para Ela.

beijinhos cariocas
Anônimo disse…
WOW!!!
Amiga espero anciosamente a publicacao de um livro seu.A sua carreira e prometedora.
No comeco achei que vc estava descrevendo a minha vida, com a diferenca de que as minhas figuras tem as qualidades mais misturadas...mas depois tudo ficou claro entendi quem é Sonilde...Brasil..e Suecio.
Super!!
Bjs
/JR
Beth/Lilás disse…
I don't believe!!!!!!!!!!!!!
Meu comentário não enrou!
Tô ferrada, vou er que escrever tudinho de novo!
Este blogger é realmente complicado às vezes e eu não sei bem lidar com ele, principalmente sobre o que vc disse lá sobre reduzir o que eles pedem para postar.

Depois reescrevo o que falei sobre isso aqui.
beijo carioca
Somnia Carvalho disse…
Hey Jo Ann, então ce gostou? legal saber!
Somnia Carvalho disse…
Hey Anônimo, cê esqueceu de assinar!

então,legal essa sua elocubração a respeito de uma continuação da história amorosa de Sonildes, Brasil e Suécio... pode ser uma idéia!

Mas sobre essa idéia, eu conheço a Sonildes muito bem e mesmo assim eu não teria resposta, caso um deles forçasse a barra. No entanto, você entendeu que Suécio era rico? Não ele não é. Ele tem uma empresa, mas ele deu tudo que tinha nela e ganha para se manter numa vida normal. Sonildes adora mesmo é a companhia do danado grandão que lhe dá segurança. Quando está no apto dele Sonildes precisa ela mesma ajudá-lo com coisas da casa, louça, limpeza, roupas etc. Suécio não tem empregada ou faxineira etc. Ele leva uma vida simples. É um cara que investe tem dinheiro para simples prazeres como uma viagem que goste ou pagar um curso legal, etc. Mas tem uma vida simples mesmo. Sem luxo, sem regalias. Sonildes trabalha muito menos no apto de Brasil, já que há uma tia dele que ajuda na limpeza por um certo dinheirinho...

Então, querido anônimo, acho que sua pergunta fica sem resposta. Não seria esse o problema que a faria decidir por um ou outro. Entendeu?
Somnia Carvalho disse…
Querida Lilás,

o Renato disse a mesma coisa sobre a Soniles e seus amores: só dá para sentir falta daquilo que se conhece. Sonildes só é indecisa porque pôde conhecer mais que um mundo, digo, homem... rs..

Então, qual mensagem perdeu????
Sobre o negócio de lidar com o blogger te ajudo por email. Beijcoas
Anônimo disse…
Cara Sonia,
nem é preciso publicar pois estou interessado no que diria o casal brasileiro caso pudesse se imaginar nos sapatos de Sonildes... perceba, sou brasileiro e executivo nivel medio de uma multinacional e mudei-me pra Suecia ha 1 ano e meio com minha familia. Um severo pacote de restricoes foi anunciado pela empresa mundialmente...lendo seu conto identifiquei-me (e junto minha familia) imediatamente com a sua Sonildes pois conheco bem estas realidades. Me perdoe se continuo anonimo. Obrigado pela atencao e por nos brindar com seu brilhantismo!
Somnia Carvalho disse…
Caríssima amiga Jéssica,

obrigada por levantar minha bola. Eu me divirto escrevendo e é bom saber que tem gente do seu alto gabarito que se interessa! rs...

Amiga, eu não entendi: os seus dois amores - metafóricos? são mais parecidos? por que seria? voce pode revelar?
Lúcia Soares disse…
Seu coração está entre dois amores. Os dois a satisfazem, cada qual à sua maneira. Deixar um não é necessariamente ganhar o outro.É melhor viver esa "bigamia", esperando que cada um tome posição em sua vida. Definitiva. Mas, se eu fosse voc~e, não corria muito, não...Vai vivendo sua vida com os dois, que é a melhor coisa. No fim, tudo se encaixará...
maria disse…
adorei!! espero ansiosa o proximo capitulo!
Somnia Carvalho disse…
Caro Anônimo,

você não imagina o quanto eu pensei sobre sua resposta... na verdade, cheguei a criar um outro post na cabeça para respnde-lo, mas ficamos doentes e não tive como... por isso acabei não respondendo aqui também.

Sabe, sempre nos fazemos essa pergunta: e se tudo der errado, e se a empresa cortar gastos etc... mas a minha sensação é a de que voltar pro Brasil e voltar pra casa, onde conheço tudo, onde Sonildes e sua esposa podem trabalhar, podem de tudo!

eu tenho certeza que o casal se equilibraria bem nos sapatos de Sonildes! se precisasse! mas tenho certeza também que uma pessoa que topa um desafio assim é alguem não fácil de se derrotar. Então, tudo que vier será bem resolvido! e eu to falando com muita convicção, sem fazer tipo nem nada!

espero conseguir fazer o tal post ainda... mas nao sei mais se conseguire, abraçao!
Somnia Carvalho disse…
Lucinha, Sonildes me disse que tá mesmo mais e a fim de aproveitar a bigamia! rs...
Somnia Carvalho disse…
Maria, eu ja disse la, agora digo aqui: prazer em conhece-la!

ainda vou incluir seu blog na minha lista, nao tive tempo!
Marcela disse…
oi Sonildes, eu sou a Marcelildes e vivo os mesmos dilemas. rsrs
Que bom que não estamos sozinhas nesse mundo, não é mesmo?
Dizem que não se pode ter tudo na vida, será que é verdade? Eu continuo querendo tudo! bjinhos

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