"Little Children": sobre o filme
Eu detesto ser estraga prazeres, mas neste caso não vou me controlar muito não, caso você ainda não tenha visto “Little Children” (2006), um filme de Todd Field, o mesmo autor de “Entre quadro paredes”. O triste título em português, “Pecados Íntimos”, é ruim porque não leva a uma gostosa descoberta que vai se dando ao longo do filme a respeito do título dado no inglês.
Apesar de ir com calma no enredo o diretor vai deixando uma pulga atrás da orelha sobre o que essas “Little Children” irão aprontar ou o que irão aprontar com essas pobres crianças pequenas que nos levarão ao clímax da história. Não é um filme daqueles nos quais o tema é explícito ou um filme carregado de emoção daqueles que você não se agüenta e puxa a manga da camisa para assoar o nariz. É um filme discreto, mas muito interessante e que faz pensar.
A história se desenrola a partir da vida de quatro personagens que, ao meu ver, amarram a trama: uma mulher casada, Sarah, (Kate Winslet) mãe da pequena Lucy; Brad (Patrick Willson) também casado e pai do pequeno Aaron. Os quatro moram no mesmo bairro classe média-alta dos Estados Unidos, no mesmo lugar onde vive Richard (Gregg Edelman), um ex-policial, e Ronnie (Jackie Earle Haley, em atuação comovente), um “ex-pedófilo” condenado, se é que posso chamar alguém assim.
Sarah e Brad são figuras conhecidas nossas: frustrados com suas vidas de casados e com o fim que seus sonhos juvenis levaram eles se dedicam ao cuidado de seus filhos. Os quatro se conhecem num playground freqüentado por outras mães frustradas e hipócritas e suas respectivas crianças pequenas. Sarah é colega do grupo, apesar de não ter muitas afinidades com ele. Brad cuida de Aaron em tempo integral enquanto sua jovem e bela esposa trabalha o dia todo e sustenta a casa. Ele também se dedica a estudar para um concurso no qual nunca passa, motivo pelo qual se sente desacreditado pela mulher, pela sogra e principalmente por si mesmo.
O que era só uma atração física inofensiva entre Sarah e Brad logo se transforma em traição freqüente quando Sarah descobre que o motivo do sem graça de seu marido não lhe dar atenção é que ele seja um viciado em sites pornôs, gastando todo o tempo livre que tem em frente ao seu computador. Cansada de cuidar da casa, da filhinha cheia de personalidade ela se deixa envolver numa história, de início, muito inocente entre ela e o atraente e atencioso Brad. Para este, muitas são as frustraçõeszinhas que o levam à traição: a cobrança da esposa e sua preocupação excessiva com as contas da casa, o fato dele se sentir ignorado e sem valor para o filho quando a mãe logo põe os pés em casa (dilema que normalmente toma conta das mães que se dedicam integralmente à casa e aos filhos), seus eternos estudos que não o levam ao emprego desejado etc.
Enquanto esse romance proibido acontece, Ronnie (o desajustado sexualmente) passa o filme todo sendo perseguido pela comunidade do bairro, principalmente pela figura do ex-policial Richard afixionado em colocá-lo de volta na cadeia. Como uma figura carente e problemática, Ronnie é cuidado por sua dedicada mãe que tenta protegê-lo e cuidar para que ele volte a ter uma vida normal. No entanto, trata-o como uma criança, tal qual Sarah e Brad fazem com seus filhos.
O ódio e a fixação de Richard pelo pervertido Ronnie esconde, na verdade, o ódio que tem por si mesmo e por não se perdoar pelo passado: um erro e a morte de um jovem inocente é que o fizera deixar de ser policial. O que ser e o que fazer depois disso? Ele não sabia. Por isso criara uma função para si mesmo: cuidar da comunidade vigiando e ameaçando dia e noite o pedófilo que punha todos em risco.
Como se fossem pequenos e apenas brincassem
Aos poucos vamos vendo que os adultos do filme são quase todos infelizes, frustrados e perdidos. Todos eles escondem pequenos pecados cometidos todos os dias, mas não deixam de apontar os pecados do outro. A figura mais sincera da trama curiosamente é a de Ronnie que admite ser uma pessoa complicada e perigosa e conhece suas limitações em ter uma vida normal como deseja sua mãe. Ele luta consigo mesmo para ser um “bom garoto”, como pede a mãe antes de sofrer um ataque fulminante, provocado por mais uma das histerias do ex-policial.
Os únicos felizes e, por incrível que pareça, responsáveis da história são as crianças que cumprem bem seu papel: brincam, se divertem, amam seus pais e lhes exigem atenção e cuidado. Lucy, em certa ocasião, faz um lindo porta-retrato para receber sua mãe de volta de um encontro com Brad. Ao tentar dar-lhe o presente, a mãe aparece deslumbrada com o encontro dentro do banheiro e não consegue dar atenção à filha, a exemplo das criancisses que seu marido também lhe fazia. Há uma certa angústia provocada pelo enredo porque a gente se põe a imaginar o que essas crianças farão que desembocará numa tragédia do enredo: elas contarão em casa sobre o caso de seus pais? Sofrerão algum acidente que deixará seus pais arrasados? Ou serão vítimas do pervertido Ronnie?
Essa idéia que nos ronda enquanto vemos o filme, motivada pelo título vai se desfazendo. À medida que a história avança, vamos nos dando conta das infantilidades, irresponsabilidades que as pequenas crianças adultas vão cometendo. Das mais ingênuas às mais perigosas: a esposa de Brad deixa-se guiar por uma atitude impensada quando põe o lindo filhinho em sua cama para dormir entre o casal e não percebe que, como mulher, está cada vez mais distante do marido; o marido de Sarah deixa mulher e filhas de lado por uma tara voyerística; Richard age feito menino quando picha a casa de Ronnie, chora ao perder um jogo de futebol e ao ser trocado por Brad, que se mostra um jogador melhor no time; Brad fantasia ser o herói do jogo e se sentir novamente com poder de tomar as rédeas de sua vida. Confunde a brincadeira com a realidade, como se pudesse transferir os papéis e sonha em ter uma vida descontraída como dos adolescentes que brincam de skate na praça perto de sua casa. Sarah põe sua vida segura e a vida de sua filha em risco quando se entrega à paixão com Brad dando pistas extremamente adolescentes para a comunidade e para a esposa traída de que ela é a amante de Brad. Freqüenta a piscina do clube todos os dias para se encontrar com o amante, vai ver um jogo dele e o aplaude como uma fã de torcida organizada.
Dito assim pode parecer que os personagens sejam todos pessoas problemáticas, excessões das quais queremos distância no nosso dia-a-dia. Pessoas que vemos “por aí”. Ao contrário, elas representam os adultos que tentamos ser. Elas são as “Little Children” ao qual o título se refere porque estão o tempo todo entre o que devem fazer e ser e o que desejariam fazer e ser. Estão entre a realidade e a fantasia e não conseguem unir as duas coisas. Olham para os sonhos ou os erros do passado como se esses ainda pudessem construir o presente e o futuro, mas não percebem que só crescendo, só superando esses sonhos e erros é que podem caminhar mais felizes.
Sarah e Brad só percebem isso quando ao marcarem de fugir de casa, Sarah encontra Ronnie chorando no playground a noite, depois de voltar do hospital com a notícia de que sua protetora havia morrido. Ao perder sua filhinha por uns minutos Sarah se põe em total desespero e é só a sensação rápida de que podia perder quem mais amava, Lucy, que a põe de volta no carro no meio da noite, rumo à segurança de casa. Brad só cresce quando, indo ao encontro de Sarah e para a fuga calculada, pára no caminho para tentar pular de skate com os adolescentes da praça e se machuca todo. Quando percebe que não é mais um garoto como aqueles que invejava, que deveria estar em outro lugar que não era nem com eles, nem com Sarah, mas com sua linda mulher e seu carinhoso filhinho. É só o tombo que o faz notar que agia feito criança e se aproximara de Sarah porque se sentia apenas mais acolhido. Embora o final não pareça feliz, os dois parecem ter voltado para casa, mas não necessariamente assumindo os mesmos papéis de antes e sim com uma nova perspectiva. O futuro parece se libertar do passado.
O mesmo acontece com Richard. É a morte da mãe de Ronnie que o faz encarar que agira com total irresponsabilidade, que não podia dar segurança a ninguém, mas que ele sim era uma ameaça. Um belo encontro se dá quando a culpa o faz buscar Ronnie para pedir desculpas e este está no playground chorando, tentando se mutilar para por fim ao seu sofrimento e ao sofrimento que causa à comunidade. O ex-policial tem a chance de se redimir tratando decentemente àquele que tanto perseguia e levando Ronnie ao hospital.
A dura e incômoda tarefa de crescer
Pensar nas nossas tolices diárias na verdade não é nada agradável. Ser adulto o tempo todo é chato e cansativo. O problema é quando o desejo de extrapolar, de não se sentir pressionado ou de “deixar as coisas rolarem” nos levam para caminhos em que perdemos mais do que ganhamos. Adiar uma tarefa imprescindível em troca de horas de sono ou diversão, gastar mais dinheiro do que posso na compra daquele lindo vestido ou aparelho de som etc são coisas de início gostosas de se fazer, mas que depois nos causam mais culpa e desconforto do que antes. A vida não é prazerosa o tempo todo e como adultos devemos perceber que o “Princípio de Prazer”, ou seja, aquilo que Freud entendia como sendo o desejo de obter prazer em tudo, o tempo todo, típico de uma criança, não pode se sobrepor ao “Princípio de Realidade”. É preciso assumir a condição de adulto, sem necessariamente deixar que a vida vire uma chatice, uma rotina em que não queremos estar. É possível continuar tendo uma vida prazerosa como de uma criança sem, no entanto, agir como criança. Mesmo porque quando avançamos um pouco o resultado pode ser melhor e mais gostoso do que o esperado, ainda que crescer possa ser difícil e doloroso demais.
(créditos: desenho de Luana da Silva Carvalho, a sobrinha que eu queria manter sempre pequenina)
Comentários
Fico feliz em poder compartilhar este momento tão especial da tua vida e ansiosa para conhecer a carinha do Angelo.
Beijinhos, BAR
eu havia lido o livro... perturbador.. Vc escreve bem demais, parabéns!
beijos,
Dani