("Mulheres de Atenas", tela que pintei há mais de seis anos, nunca mostrei a ninguém e vive no depósito de casa. A idéia esquisita que a inspirou foi a de que cada mulher tem em si multi personalidades e nenhuma de nós é igual a outra. Nossa beleza é de sermos únicas, ainda que estranhas, Somnia Carvalho, 2003)
Era o ano de 1983 e eu tinha 12 anos de idade.
Cravada no interior de São Paulo, no meio de uma vilinha da COHAB, eu vivia junto de minha família como se o Universo todo fosse o caminho que ligava minha casa à escola.
Pega-pega na rua, bonecas, esconde-esconde e outras brincadeiras se somavam à rotina da sexta-série. Sessão da tarde na tevê com meus irmãos, o pôster de Michael Jackson na parede e o "Like a Virgin" da Madonna (quem na época eu nunca sonhava encontrar) no rádio velho do meu pai.
Eu não pensava em muito mais, ou ao menos não me lembro de pensar. Minha vida era simples e eu era só mais uma garota boba do interior. Ou ao menos assim o mundo queria que eu o fosse.
E foi dessa maneira que, num dia qualquer daqueles anos, nossa professora, Dona Léa, da antiga e obrigatória disciplina Educação Moral e Cívica, chegou na sala e disse que teríamos uma aula muito diferente.
- Ôbaaa! pensei em voz alta comigo mesma, enquanto mais alguns e algumas demonstravam o mesmo empolgamento.
E então Dona Léa, uma mulher calma, de voz suave, cujo óculos conjugava um falso (hoje eu sei) ar intelectual, foi nos contando como tudo iria ocorrer.
Tratava-se de uma aula especial para meninas. Todos os meninos deveriam sair da sala, porque nós iríamos discutir algo extremamente importante naquele dia. Nossa aula seria sobre educação sexual, incluindo informações de como se prevenir contra doenças e gravidez e se cuidar bem.
Toda aquela molecada e meninada se olhou curiosa. Os meninos estavam ainda com olhar questionador quanto ao que viria, quando ela completou:
- Vocês todos podem ir até o páteo e jogar bola até que a aula acabe. Vamos!
E então foi um alvoroço. Os moleques se levantaram radiantes, falando em voz alta, empolgadíssimos com a aula enforcada, ao mesmo tempo em que eu soltei um sonoro:
- U QUÊÊÊ?
Alguns deles pararam para ouvir e a professora olhou para mim calmamente e perguntou:
- Qual o problema Sônia? Você tem alguma questão?
E então fui falando meio esbravejante, assim mesmo com indignação quase política saída não faço idéia eu de onde:
- Se a aula é de educação sexual porque é que só nós meninas somos as interessadas? Que eu saiba a gente não consegue engravidar sozinha! Não tô entendendo porque eles vão jogar bola, enquanto a gente fica com a parte chata! Eu prefiro ir com eles!
Argumentei do meu palanque na segunda carteira e esperei pelos aplausos que não vieram, obviamente.
Foi minha perdição.
Eu já era (ao menos eu achava que era) considerada meio esquisitinha na sala. Eu tirava excelentes notas e era meio tratorzão com o pessoal. Eu não era loirinha, de olhos azuis e corpinho que prometia para a adolescência. Magrela e alta estava sempre no grupo das inteligentes, embora eu entenda agora que não era mega inteligente, mas era apenas um pouquinho mais esforçada que a maioria. Eu não estava e nunca estivera entre as queridas e populares da sala. As professoras adoravam meu interesse pelas aulas, mas a verdade é que no intervalo o que eu normalmente levava na brincadeira do "Beijo, abraço ou aperto de mão" era só um apertão na mão com o corpo bem longe um do outro.
E foi então que minhas coleguinhas famosas da sala me olharam com aquele olhar penetrante, fuzilante. Com as cabecinhas levemente abaixadas, me encarando e balançando para lá e para cá, fazendo aquele som com a língua presa entre os dentes, elas me julgaram. Até hoje me lembro perfeitamente de seus olhares: eram como donzelas, Penélopes charmosas que entendiam perfeitamente como se portar na vida e na escola para um dia arranjar um bom casamento. Elas tinham tanta certeza de que já faziam a escolha certa.
- Esquisita! Esbravejou uma falando sozinha para o chão.
E assim também o fez a professora Léa. Com cara de "ai sua tolinha!" ela explicou fingindo paciência aquilo que eu já deveria ter entendido antes sozinha mas que, felizmente, ela estava ali para me fazer compreender. Seu discurso, o qual não consigo reproduzir literalmente, mas me lembro bem o conteúdo, dizia algo mais ou menos assim:
- Sônia se cuidar é tarefa da mulher. Os homens sempre vão se relacionar com uma, duas, mais mulheres e não se cuidam, porque é assim que é. Eles se envolverão com prostitutas, porque é assim que eles são e gostam de ser. Você precisa cuidar de seu corpo e tomar cuidado. Hoje em dia uma moça que perde a virgindade acaba caindo na vida. Você precisa entender que se não tiver orientação vai ser usada pelos homens e deixada de lado. Ou você não pretende se casar?
Nóóó!!! Aquela pergunta fora a consagração da minha sentença. Toda a sala olhou curiosa para mim, incluindo as minhas duas amigas inteligentes, "feias" e próximas, Zilda e Helena. Eu era péssima menina seja porque não demonstrava interesse em me casar, seja porque não queria me cuidar para não ser usada e jogada fora.
Eu, que na época não acreditava mesmo em casamento e até tinha planos secretos de ser freira missionária para "salvar-gente-pobre-de-marré-de-si--carente-de-minha-ajuda", pra ser sincera, não sabia do casamento mais do que o que via em casa e na casa dos vizinhos. O que eu sabia era que não gostava nada do que via e ouvia e tinha muito medo de reproduzir o mesmo um dia. Por isso respondi mentalmente: "E daí se eu não quiser!?"
Bom... ladainha vai, ladainha vem, fato é que tive de permanecer na sala. Ouvi tudo, assim de braços cruzados sabe? Porque o corpo da gente fala e eu quis falar do meu jeito o que sentia, ainda que ninguém ali estivesse a fim de me ouvir.
Eu não estava aberta para aquela aula de Educação Moral e Cívica, que incluia os "horrores" todos acerca de sexo entre gêneros iguais, aborto, sexo anal (o qual segundo minha professora fazia a mulher não ter mais controle das suas próprias fezes e a obrigava a viver de fraldas feito bebê), Informações cheias de conteúdo que o governo e a Igreja da época a obrigava a nos jogar goela abaixo.
Passados todos esses anos eu lembro desse episódio com um certo orgulho infantil. Todas as vezes que alguém fala de feminismo eu fico me questionando como foi que o meu se deu início e fico ainda sem resposta exata.
Todos os anos de eleição, quando volto à minha antiga escola para votar, eu normalmente reencontro algumas daquelas meninas, hoje mães de muitos filhos, e também alguns dos meninos. A maior parte vive na mesma vila, vai ao mesmo supermercado, educa seus filhos na mesma escola e bebe de valores comuns que parecem ser suficientes para lhes trazer alguma felicidade.
A beleza prometida na infância nem sempre se concretizou na vida adulta ou ao menos não se eternizou e não sei como lidam com isso. A vida deles segue e a minha que não prometia muito também. Há, porém, uma grande ponte que me separa da Sônia da década de 80 e a Sônia atual: hoje eu sei que não era eu a esquisita. Esquisitas eram todas aquelas meninas que pensavam ser obrigadas a assumir o papel que alguém havia preparado para elas na vida.
O que eu era? Eu era uma pequena feminista. Era isso sim o que eu já era!
Comentários
Eu sempre fui a quietinha, a que tinha vontade de falar mas ficava quieta.
Absurdo mesmo a maneira como as mulheres foram criadas.
Imagina, então, o que era na "minha época", eu adolescente nos anos 60.
Sexo era algo tão "proibido" que nem a palavra era dita! rsrsrs
Mas, quer saber? em muitas coisas...bons tempos...
Beijo!
Aconteceu comigo também, recentemente, a descoberta de que nem sempre a beleza da adolescência era passaporte para a felicidade como muita gente me fazia pensar. Aos treze anos era das meninas invisíveis da sala, daquelas que sentam perto da parede, que tem uma ou duas amigas e nunca são convidadas para nada.
Como não era bonita tinha todo o tempo do mundo para estudar. Já as mais bonitas se dedicavam as festas, ao cinema com os garotos, as paqueras no colégio. Pra quê estudar se eram bonitas e alguém sempre dava cola a elas.
Hoje a realidade é outra, tenho um ótimo emprego, um marido lindo, que me respeita e que quando não estamos pra namoro, adoramos sair pra tomar uma cerveja e conversar sobre temas variados e viajamos muito para Europa, Usa e Caribe.
Esses são os frutos de uma vida dedicada aos estudos.
Bom, professorinha básica. E imaginar a quantidade de meninas que a devia idolatrar. Engraçado que eu não me recordo de muita coisa. A sensação que tenho é que estava no grupo, não chamava a atenção, inteligente sim, ou pelo menos, esforçado como dizes, mas acima de tudo calada. Mesmo que pensasse do mesmo modo, que infelizmente não sei como era.
Adorei a sua descrição de como vc foi condenada pelas coleguinhas. Eu me senti lá naquela sala, sendo vc. Abração, querida!
Ah, eu era tãããooo abestadinha. Cheia de medos e de inseguranças. Me achava burrinha, pode?! Em terapia, já coloquei muito aquela menina (eu) no colo, e falei coisas boas de ouvir, do quanto ela sabia escrever bem, sempre saindo-se muito bem no famoso e temido ditado, onde escrevíamos a palavra "sorteada", direto na lousa.
Como eu adoraria, Somnia, ter sido mais corajosa quando criança! Mas tudo bem, a coragem não me faltou, mais tarde, para os desafios da vida!
Ah, e esse post vai pro concurso da Lolinha, né? ;)
Um beijo!
beijo e sodade
Pensei que era só nos meus tempos de garota que tudo era tão fechado, recolhido e sagrado. E eu era mais uma 'por forex' que tinha na época, não estava nem aí para essas coisas, alienada que só, completamente mergulhada no mundinho a que éramos submetidas não só pelo regime militar como familiar.
Coisa besta sô!
Vou torcer para que ganhe o tal concurso.
bjs cariocas
esse texto ira sim pro concurso da Lola, de divulgacao de blogueiras... mas entrara na urtima fase, por enquanto podem conhecer os textos da segunda parte que estao concorrendo esta semana...
beijocasssss
Boa sorte pra gente nesta quarta etapa do concurso!
[E coitada desta professora...]