("Mulher negra sentada com criança branca", Foto do Acervo de The Randolph Linsly Simpson Collection, Yale University)
Foi em dezembro do ano passado, de férias no Brasil, que acabei indo parar em quase todos os shopping center de São Paulo.
Estou longe de ser alguém amante de compras e de lugares fechados assim, sobretudo no verão e nas férias, mas infelizmente, durante os dias da semana, as opções de lazer ficavam restritas a isso. Tentei de tudo: piscinas, parques públicos, SESC (sem nenhuma exposição, porque era época de férias), nada. Num desses passeios fui parar no Shopping Iguatemi, famoso pelas suas exposições de Natal, com bonecos que se movimentam, música e todo um clima de Natal.
Pensei que poderia ser divertido tem um monte de bonecos para Ângelo ver fui me achegando à praça onde estavam os bonecos todos e muita gente ali fotografando, admirando o cenário.
A montagem remetia ao Natal num lugar frio. Os bonecos e suas roupas me faziam concluir que se tratava, obviamente, da terra do Papai Noel, terra onde, vocês sabem, fica no mesmo país onde eu moro.
A Suécia é longa, muito longa e dela faz parte a Lapônia. Foi lá que Santa Klaus, um velhinho loiro, muito loiro, de olhos azuis e barba longa ficou famoso por espalhar presentes para a criançada pobre na noite do dia 25 de dezembro.
E lá estava ele, o bom velhinho, no Shopping Iguatemi, acompanhado de sua senhora e de seus prováveis netinhos. Todos loiros e lindos. Bonecos perfeitos, com seus olhos imensos azuis, estavam sobre a cena principal da casa maior. Eles me pareceram ser os "donos" do lugar. A Mamãe Noel, ao lado de seu esposo, ficava bem pomposa em frente sua casa, mexendo-se conforme tocava a música.
Um trenzinho passava de cá pra lá, de lá pra cá e o pessoal que visitava o shopping ia se aproximando e mostrando aos filhos a cena bonita.
Fui rodando o palco e procurando outros bonecos para mostrar para meu Ângelo quando notei que lá atrás das casas haviam outras bonecas altas e bonitas. Entretanto, elas não estavam pomposas, de peito aberto e cabeça erguida olhando e recebendo as visitas que por ali chegavam. Estavam por trás das casas e, se me lembro bem, duas delas estavam abaixadas, fazendo algo como limpando ou arrumando umas coisas que estavam no chão. Não lembro se era lenha, ou o que, mas sei bem que elas estavam trabalhando na casinha da Mamãe e do Papai Noel.
Tudo seria lindo e maravilhoso, digno de nota dez na decoração se, e somente se, as senhorinhas arrumadeiras não tivessem um detalhe diferente das senhoras que posavam em frente à casa: elas eram as únicas negras. E não havia senhorinhas negras na frente da casa, só escondidas no fundo e só fazendo algo, "laborando". Elas eram claramente, sem sombra de dúvida, as empregadas e não as patroas.
(Estratégias de markenting: o ator Lázaro Ramos foi convidado a estrelar campanha publicitária do Iguatemi na Bahia, onde, ao contrário do Iguatemi em São Paulo, não há tanto "problema" em ser Papai Noel Negro)
Meu sangue ferveu por uns segundos e tentei pensar que era apenas mais uma de minhas análises neuróticas, mas rodei de novo para ter certeza. Sim. A decoração do shopping de elite brasileira tinha concebido uma decoração de Natal, baseado na história do Natal Escandinavo, que reproduzia uma cena de preconceito e opressão brasileira.
Muito curioso que mesmo que pensarmos que alguém como o Santa Klaus, velhinho tão ocupadinho coitadinho e que talvez pague direitinho seus empregadinhos, que bonitinho! precisa mesmo de gente para ajudá-lo nesses dias. O que me incomodou foi que não haveria problema se houvesse coerência. O Santa Klaus e os seus foram reproduzidos com tanta elegância e precisão com seu narizinho pontiagudo, bem característicos do povo do norte da Escandinávia, ao contrário, os empregados (se é que os lapões têm empregados) não. Coerentemente eles também deveriam ser loirinhos. Sim, porque por aqui ou as pessoas não tem empregados (o que acontece com quase todo mundo, já que pagar o empregado sai bem caro porque todo mundo ganha mais ou menos a mesma coisa) ou o empregado é sueco mesmo. Ou ele é imigrante europeu, como polonês, russo etc (que também é alto, loiro de olho azul) ou do Oriente, nos dias atuais. Raramente, mas muito raramente eles são negros, a não ser que eu realmente só faça análises superficiais do que vejo aqui.
E, então, você pode me perguntar qual o problema de ter uma mulher negra ajudando na casa de bonecos do Papai Noel? E os organizadores da decoração podem muito bem usar do argumento politicamente correto de que a cena não era composta apenas por brancos. Nossa! que incrível! E não eram mesmo! Aliás, seria muito mais original se o fosse!
O problema é que todas as babás - e ali comigo havia algumas dezenas delas - que estavam ali cuidando dos filhos das suas patroas, eram da mesma cor que a senhorinha lá atrás da casa. E o salário delas, naquele shopping, onde brincavam e cuidavam das crianças das suas patroas brancas, não dava para comprar um vestido pra ceia com a família. E também não comprava o presente dos filhos. E muitas das patroas estavam por ali mesmo, tricotando com as mães ou amigas, comprando, mas podiam se dar ao luxo de ter as senhorinhas negras cuidando de seus filhos por muito pouco.
O detalhe, pequenino, que a gente não se apercebe, com o qual a gente se acostumou tanto a olhar reflete o que no fundo pensamos e aceitamos:
- que é natural ter empregados que nos sirvam desde que a gente seja justo pagando os salário que o governo nos mande pagar, ainda que seja muito menos do que eles mereçam ganhar.
- que não há problema que eu ganhe mais, ou muito mais que eles, porque isso é justo, já que eu trabalhei, ou estudei mais, ou minha família tenha nome que justifique isso.
- que não é nada demais que a maior parte dos empregados domésticos, ganhadores de salários mínimos, sejam negros, mulatos ou quase todos "pretos, ou quase brancos", como cantava Caetano Veloso, porque essa é a relidade brasileira.
- que o mundo desigual é produto de algo do passado, é culpa dos portugueses malandros que dominaram os índios e fizeram escravos os negros e não culpa ou responsabilidade minha.
- que a desigualdade e o preconceito mascarado, mas tão bem aceito e justificado, que uma montagem de Natal num dos lugares mais visitados de São Paulo não passe por nenum constrangimento, nem seja questionado pelos milhares que a visitam.
E então eu me retirei. E não tive vontade de voltar. E fui com um nó na garganta olhando para as babás escuras com bebês branquinhos que estavam ali. Olhei para o desânimo da maior parte delas e para seu olhar parado no chão e pensei que se mais análises neuróticas fossem feitas tantas coisas no Brasil seriam tão diferentes. E se ninguém me dissesse: é assim, você precisa aceitar, mas quisesse conversar, discutir, ir além, me questionar e me dar argumentos diferentes talvez eu até desistisse de ser tão tão dramática. O problema é que fazer análises neuróticas é preciso se temos intenção de que algum dia a miséria, a educação, o medo, a violência sejam diferentes. Não há mudança sem perda e o problema é que tem gente demais que não quer perder nada.
...
Esse post foi inspirado pela animada discussão sobre um comercial de TV da Ford que a Lola discutiu em seu blog esses dias. A troca de comentários com outros leitores de lá e o texto da amiga Lilás me fizeram voltar a esse post esquecido na minha memória, aqui.
Comentários
Realmente acredito com minhas lentes azuis que se a gente escrever mais e mais sobre isso, se conversarmos e mostrarmos um outro ponto de vista, a coisa possa ir mudando, mas não sei, são poucas vozes contra muitas a favor, fora o ver no dia-a-dia que acaba deixando parecer normal.
Mas fazemos nossa parte.
Adorei seu post.
Beijo
Estamos vivendo em uma desigualdade racial, social... e as pessoas que vêem e isso e acham normal, é pq pensa assim tb!!
Eu tenho esperança de um mundo mais justo!
bjks e bom fim de semana!
Obrigada pela linkagem ao meu texto, realmente tem muito a ver.
beijinhos cariocas
agora mudando de assunto. convidando você para ser autora do blog MUNDO COLORIDO. Caso aceita. passa e-mail para convidar. ok?
abraços
sabe que quando li seu comentario eu pensei: uau! queria ser assim! queria conseguir falar mal da minha maezinha ou de quem fosse sem me sentir assim mal, sabe? eu nao acho que vc sinta, vc parece lidar mesmo muito bem com tais diferencas e consegue falar numa boa!
menina esperta voce!
Lu, escreve la o post! eu vou adorar ler! isso se vc nao escreveu ainda nessa semana de ausencia minha!
acho que esses assuntos sao fortes e interessantissimos, pena que no fundo muita gente nao goste de ouvir falar sobre...
beijos
estamos sim num mundo preconceituoso e desigual, a diferenca e que a gente finge que ta tudo muito bem obrigado ne?
eu nao tenho muuuit esperanca, mas e preciso manter a chama! e eu acredito que nao ha mudanca sem consciencia, entao... melhor a gente falar o que acha ne?
eu acho sim, mas veja que ate mesmo aqui pouca gente comenta... eu ainda acho que assuntos espinhosos a gente prefere deixar pra debaixo do tapete... triste, mas e verdade.
obrigadissima e me manda informacoes sobre... no:'
borboletapequeninanasuecia@gmail.com
Sobre o assunto do post: eu nao acho que a gente nasca programado pra desigualdade, nao assim desse jeito. Acho que e natural do ser humano, porque somos animais tambem, querer disputar, sentir se superior para dominar o outro e tal. Mas como seres racionais e construtores de uma sociedade justa e que valha para todos a gente nao pode aceitar isso como algo dado a priori e pronto. Acho que mesmo que eu sinta preconceito contra algo ou alguem eu quero poda-lo porque tenho consciencia de que isso e minha parte animal falando e uma parte que prejudica o outro, a mim e a todos de uma forma ou de outra... falei muito! bjs
seu sotaque e gostoso de ouvir ate na escrita!
verdade... problema e que pouca gente se liga ou quer se ligar!