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Onde é mesmo o Haiti?


("Crucificação", Emil Nolde, expressionista alemão, 1912)


Ontem, depois de ter escrito o post sobre Paula Oliveira, a brasileira atacada por neonazistas em Zurique (que também foi tema de textos nos blogs de conterrâneas de imigração, a Paula Sartoretto, e a Ju Moreira) lembrei-me muito de uma música do Caetano. Ela ficou tocando assim várias vezes na minha cabeça.

"Haiti" foi tema de muitas aulas de redação que eu e umas amigas demos no antigo Cursinho DCE-Unicamp. Ouvindo e refletindo sobre seu conteúdo, lembro dos alunos ficando surpresos com qual tipo de questionamento Caetano acabava levantando. 

Pensar que o"Haiti é aqui" significava pensar que o lugar onde a discriminação, exploração e miséria acontecia não era só lá longe de nós. Todos os dias o mesmo acontecia por aqui, embora "aqui", no Brasil, não fosse o Haiti. A letra é maravilhosa e gosto do ritmo meio compassado e picado de Caetano, quase falado. Pura denúncia e alerta.

Lembrei dessa canção porque apesar do caso ter ocorrido longe do Brasil e tudo parecer tão "horrível", sempre penso que são os pequenos atos terríveis cometidos em muitos cantos do planeta que favorecem os atos mais cruéis. 

Nem sempre o espancador tem uma careca e deixa seus rastros. Muitas vezes somos nós "inocentemente" apenas levando nossa vida, sem perceber que a fazemos em prejuízo do outro.

É bom lembrar que a população que apoiou Hitler e o Holocausto, por exemplo, se julgava inocente e "apenas" queria ter de volta seu emprego e sentir-se mais protegida dos "invasores" que ali estavam. 

Todo cuidado é pouco. Em cada caso assim a gente tem que vigiar em si mesmo qualquer sentimento parecido. Tem que dizer para todo mundo que a intolerância é inaceitável e tem que tentar cortar pela raíz, porque nada garante que idéias assim nos levem a horrores como os do passado. Assim já alertava Adorno e Horkheimer, em "Personalidade Autoritária", um livro que pretendo por a resenha para vocês. 

Até breve!
E obrigadíssima pelos comentários. Responderei logo logo!

Abaixo, vai a letra para quem não conhece ou para lembrar. É longa, mas vale muito a pena. Clicando no nome você pode ver o vídeo no youtube. 


...


Quando você for convidado pra subir no adro da 

Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam
estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de
meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui


(Caetano Veloso)

Comentários

Beth/Lilás disse…
Queridoca,
Hoje a coisa já toma outro rumo.
Você já leu esta notícia do G1?
Veja aqui:
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1000580-5602,00-BRASILEIRA+FERIDA+NA+SUICA+NAO+ESTAVA+GRAVIDA+DIZ+POLICIA+LOCAL.html

A gente até fica confuso com isso tudo, sabia?

bjs cariocas
olhodopombo disse…
Interessnate tambem eh a leitura do austriaco Thomas Bernhard sobre exatamente esta intolerancia, ele comenta do perigo do nacional socialismo, e dizia (em 1975) que a Austria não havia se livrado do pensamento que culminou no Holocausto;e que a Europa ainda pode vir a levantar esta bandeira...
Somnia Carvalho disse…
Betíssima Lilás,

sabe eu nao sei se ando vendo séries demais ou lendo sobre governos totalitarios demais, mas é muito comum que governos assim simplesmente desfaçam historias para não perder ponto em jogada.

O Bush, vi um documentario na TV, conseguiu manipular por anos pesquisas e resultados de pesquisas, coisa que todo mundo acreditava ser seria, para conseguir manipular opiniao publica.

Na serie 24 horas, que eu gosto, a gente ve que baseado em fatos eles mostram como e muuuito comum distorcer versoes dos fatos... e o que acredito ter acontecido com a Paula e a Suica...

e muito facil pra eles virarem a historia contra ela... quem e ela? filha de deputado? isso nao e nada na suica! ela e brasileira, ela pos os olhos da imprensa contra o governo de direita e autoritario deles... so isso!

o resto, pra mim, e balela e jogo que faz a gente mudar de lado, mas sem fundamento.

beijocas lindoncia!
Somnia Carvalho disse…
Fatíssima,

verdade!

Preciso ler esse cara! o Adorno dizia o mesmo em 1930... que a Alemanha poderia vir a sustentar coisas como o nazismo de novo... que o perigo estava sempre iminente porque o sentimento de autoritarismo e a intolerancia nao morrem nunca no ser humano...

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