Eu acho muito curiosa (para não dizer deprimente) a mentalidade de muita gente da classe média brasileira.
Dias desses ouvi um zunzunzun entre duas mulheres no prédio onde moro e fiquei pensando que, não dificilmente, quem tem "nível" acaba agindo igualzinho àqueles que "não têm".
O bafafá começou mais ou menos assim: uma mulher no andar de cima jogou água de forma inapropriada em sua sacada e esta acabou caindo lá embaixo, no parquinho, onde as crianças, inclusive o Ângelo, brincavam. A avó de uma das crianças reclamou em voz alta qualquer coisa e a outra retrucou. A coisa continuou e cada qual respondia mais feio a ponto de, neste momento, eu e qualquer um da vizinhança ouvir a troca de elogios. Até que a de cima disse algo bem grosso como:
- "Fica quieta sua velha maluca!"
Ao que a outra retrucou algo no sentido de que era velha, mas ao contrário dela, muito educada.
- Vai estudar!, esbravejou. Você faz jus ao trabalho que faz mesmo! Sua trabalhadora braçal! Vai, vai estudar! Trabalhadora braçal!
Bom, não vale a pena continuar a descrever o show de horrores das minhas vizinhas. O fato que me deixou mesmo perplexa, desanimada foram as argumentações. Tão preconceituosas. Tão limítrofes.
Uma delas acha que idade é sinônimo de inutilidade, caduquice, embora a "velha" de quem ela falasse não deva ter mais que uns 65 anos. Como ela se sente mais jovem também se vê no direito de gritar aos quatro ventos que está em vantagem e é superior à outra por conta da idade.
A outra, no mesmo nível de estupidez, embora tivesse falado com voz mais sauve tentando imitar gente fina, acredita que fazer trabalho em casa, limpar, faxinar, cuidar dos filhos é algo que só mesmo uma gentinha poderia executar. Ela, inclusive, sempre está no parquinho com seu neto acompanhada da babá (quem, por definição, deve ser de baixo nível, embora sirva para cuidar do seu netinho querido). A mesma babá quem, vestida de branco, ouviu toda a discussão fina da patroa.
E isso é uma das coisas ex-tre-ma-men-te frustrantes no Brasil: cuidar dos filhos, ainda que por tempo determinado, lavar você mesma sua roupa, fazer sua comida é entendido como uma ação quase imoral. De baixo nível. Quem tem nível paga para que outro o faça. Quem é chique tem que aparecer com a babá no parquinho.
A inversão de valores é absurda!
Não acho que todo mundo precise e consiga executar ele mesmo todas as tarefas de casa e com seus filhos. Eu não gosto da idéia de se ter babá para cuidar das minhas crianças que logo crescerão e não precisarão mais de mim, embora eu também adore ser outra Sônia, a que trabalha, por exemplo, e sei que tal escolha não é tão simples para a maioria.
Entretanto, inverter isso nesse nível como minha "educada vizinha" e tantos o fazem só prova como não temos mesmo nível nenhum, porque essa mentalidade é para lá de ultrapassada, é muito terceiro mundista.
Obviamente essa mentalidade existe em qualquer lugar do mundo, porque em todo canto do mundo existe gente imbecil. Até mesmo na Suécia os ditos trabalhos braçais são, em grande parte, executados por imigrantes, mas ainda assim vejo diferenças gritantes.
Talvez pelo fato de que lá a gente precise pagar muito caro para qualquer tipo de "ajuda" braçal que precise (isso se conseguir uma), seja ela uma manicure, uma faxineira, um pintor ou pintora, normalmente não há esse destratamento com quem o faz. Não há - e não deve haver - diferença entre quem empacotou minhas coisas para a mudança e eu, porque ambos temos valores como pessoa e nosso trabalho vale pelo que é e não pelo que se estudou para fazê-lo.
Isso tudo só me faz pensar ainda mais no quanto Marx estava muito certo ao afirmar que uma das coisas mais podres do capitalismo é o fetiche da mercadoria, ou seja, o quanto cultuamos algo pelo valor pago por ela e não pelo que vale. O trabalho, tratado como mercadoria, sofre do mesmo fetiche e se o trabalho vale muito pouco, como o trabalho braçal, a perversidade é ainda maior. E triste.
Comentários
Esse desprezo que se tem pelas criaturas que trabalham, que fazem trabalho que não queremos mais fazer, que com seu suor, tocam nossa vida no paralelo.
A briga foi um festival de bestialidade humana e eu acho que se tivesse ouvindo isso tudo ia mandar um pitaco, pedindo para que as duas se calassem, pelo menos em respeito às crianças que tudo assistem e podem repetir mais tarde.
Viver fora do Brasil como vocês fizeram, ajuda em muito para alargar a mente quando se é jovem.
um abraço grande, carioca
Fora que qualquer tipo de discussão em alto som, pra quem quiser ouvir, seja lá porque for, já é o suficiente pra baixaria existir. Nenhuma das duas é fina, pode crer! rsrsr
Sempre tive empregada e sempre as tratei como igual, apenas ajudantes. Digo a elas que preciso delas e elas de mim. É um trabalho como outro qualquer, em sua dignidade.
Aqui no Brasil ainda existem as domésticas por causa da diferença social, tão famosa.
Enfim, ter ou não ter domésticas gera sempre muita polêmica.
Beijos!
Gosto muito do seu blog e ao ler esse post me lembrei de uma conversa que ouvi numa sala de professores.
Sou professora e por acaso estava em uma enfadonha janela. Era intervalo dos alunos menores (1º ao 5º ano) e as professoras, que nesse caso merecem o epíteto desrespeitoso de tias, falavam de suas empregadas.
Falavam o quanto as suas empregadas eram desleixadas, que não aprendiam nada, que por mais que elas, que se consideravam como pessoas de classe superior, fizessem coisas para ajudá-las elas continuavam naquela vidinha relaxada...
Como professora de história parecia que eu estava viajando no tempo e ouvindo senhoras do século XIX reclamando de suas escravas...
Mas o pior foi concluir que elas eram professoras... não quero julgar, mas já o faço, que tipo de educação essas pessoas podem transmitir aos pequenos???
Acho que a verdadeira revolução vai além do material, há que se ter uma revolução das mentalidades.
Um grande beijo, continue sempre escrevendo.