("O sono da razão produz monstros", Francisco Goya, 1799)
Você de vez em quando tem a ligeira impressão de que todo mundo dá conta de tudo menos você?
Eu tenho.
Lembro-me sempre da sensação horrível que me invadia quando, recém chegada na Suécia, saía às ruas de Malmö com meu bebê recém nascido no carrinho e dava de cara com aquelas mães suecas seguras, louras e esguias, bonitonas e descoladas, empurrando os seus bebês perfeitinhos, silenciosos e passando por mim com pinta de quem resolvia tudo-sozinha-sim-obrigada!
Por um instante ao menos eu as odiava.
O tempo passou e também me lembro de ao fim dos quatro anos ter um dia passado por uma mãe descabelada, cansada, perdida com os berros do bebê no carrinho. Senti por ela, mas sorri para mim mesma porque daquela vez eu era a mãe toda bonitona, segura de mim, pedalando com meu menino pelas ruas e cantarolando com ele.
Pois é. A grama do vizinho nem sempre é a mais verdinha!
Apesar de já saber disso, tal sensação de "quando vou dar conta das minhas coisas novamente?" vinha me invadindo desde minha volta ao Brasil. Desde a chegada da segunda criança. De outra e outra mudança de apartamento. Olhando ao meu redor todo o mundo parecia caminhar sem se descabelar. Embora não tão perdida e cansada quanto da primeira vez eu, obviamente, vinha planejando o dia em que começasse a "ticar" minhas pendências. A ter tempo para a Sônia novamente até que... aconteceu de novo. Hoje, exatamente hoje de manhã, parei de olhar a grama do vizinho me dei conta do quanto o desejado já está acontecendo.
É um exercício difícil olhar a grama do vizinho e não achar que ela é melhor cuidada, melhor regada, mais verde e vistosa. Sou crítica demais e exigente demais comigo mesma, então quase nunca ouço os elogios e os aceito como sinceros. Não sendo isto verdade com as críticas. Minha razão muito frequentemente produz monstros. Ela dorme.
Tive este insight agora, enquanto estava na academia do novo prédio. Voltei a me exercitar fisicamente há apenas uma semana e já sinto muito mais energia. Sinto também como tantas tarefas as quais eu vinha protelando são muito mais fáceis e tranquilas de se fazer do que eu vinha fantasiando ou fazendo de conta que fantasiava. Coisas bobas como conciliar a rotina exigente e desgastante com alguns minutos para cuidar de minha saúde física e mental. Até começar me parecia simplesmente que o tempo era curto demais e eu estaria sempre exausta no fim do dia para conseguir e talvez começasse na próxima semana.
Outra grama a qual eu vinha vislumbrando e adiando sempre era voltar a dirigir. Tenho carta desde os 18 e me lembro bem dos elogios do cara da polícia responsável pelos testes da época me dizendo que eu havia "passado para trás toda aquela centena de marmanjos" os quais vinham repetindo testes e mais testes. Eu? Passei na primeira. E muito embora eu me lembre do elogio eu, no fundo, pareço duvidar dele.
Neste anos todos dirigi apenas no interior do estado e dirigia muito na Suécia. Amava! Em São Paulo a direção parecia um monstro de oito cabeças sangrentas e assustadoras. Eu olhava as vizinhas saindo de carro, as outras mulheres no trânsito como se fossem aquelas antigas mães suecas bonitonas passando, "zombando" silenciosamente de mim.
Quando irei conseguir enfrentar o trânsito nesta cidade? Eu matutava comigo mesma enquanto surgia um monstrinho lá no fundo dizendo "nunca!" como resposta. Demorou para me lembrar de que quase sempre sou eu mesma a zombar de mim. A lembrar quem é a idealizadora e mantenedora dos monstros.
Bom, meu "nunca" acabou semanas atrás quando resolvi entrar no carro sozinha e tentar. Foi incrível como foi fácil. Como fiquei tranquila, como me saí bem. Como "matei" o monstro dentro de mim mesma com tanta facilidade. E mais incrível é como eu ensaiei este ato durantes tantos anos e nunca tivera coragem de executá-lo. Moro em São Paulo há mais de dez anos e por que só agora resolvi que podia simplesmente ir ali e pegar o regador e molhar a grama?
Tudo isso pode lhe parecer conversa de "mulherzinha" ou de gente medrosa e fraca ou ainda de uma xaropada auto-ajuda. Talvez seja. Talvez não. Vejo e ouço histórias parecidas todos os dias com pessoas conhecidas e amigas. Gente que tem qualidades e é fortes em vários aspectos, mas assim como eu (e talvez você) teme seus próprios monstros.
O medo trava o passo e um passo não dado trava a caminhada. São pequenas lutas e vitórias diárias todos os dias que creio devemos conseguir conquistar.
O meu, creio, começou quando "arrumei a casa", a externa e a interna, comecei a me sentir tranquila e capaz novamente e com energia para mudar o mundo todo, começando pelo meu.
Começou quando criei meu pequeno jardim na sacada e tenho me lembrado de regar as plantinhas todos os dias. E quando criei também uma lista de coisas urgentes e comecei a "ticá-las". Neste curto tempo já pintei mais telas, estou refazendo meu currículo e entrando em começando contatos para trabalho quando Marina estiver maior, continuo cuidando de tudo em casa e da molecada, voltei a ler e estou quase acabando um livro! Sim! Pequeníssimas coisas quase sempre adiadas por gente mães e pais atarefados e cansados, todos os dias.
Meu pequeno jardim é feito quase só de orquídeas colocadas em vasos. Não tem grama nem mais nada e nem sei se é tão bonito e bem cuidado quanto o do vizinho, mas tem me feito um bem danado, tão danado que eu precisava lhe contar porque hoje lembrei-me tanto de um quadro fantástico do Goya que pude ver ao vivo, muitos anos atrás no museu do Prado, em Madrid:
"O sono da razão produz monstros"
Comentários
o que percebi afinal é que eu preciso de listas e objetivos.Eu preciso planejar o futuro pra conseguir dar os passos no presente. tenho tido muito mais tempo pra fazer as coisas agora. tenho planilhas de gastos atualizadas, estou organizando meus arquivos, os cd's e livros estao praticamente organizados com números e uma lista para saber onde está o que e por aí vai.Acho que faltava apenas sentar no carro e dar a partida pra enxergar que o trânsito não é tão complicado quanto parece.
Quando vejo as mães canadenses com seus tres ou quatro filhos pequenos, lindas mas não tão esguias, rs... eu penso: é, acho que posso me considerar uma delas apesar de estar sempre descabelada, rs...
Mari
brincadeirinha... fico feliz que voce e eu tenhamos sentimentos parecidos. Na verdade sinto que fora do brasil e tudo tao mais dificil que dar conta das pequenas coisas todos os dias e uma vitoria imensa e nos torna tao mais fortes que muita gente por aqui nao consegue imaginar.
Ai nossos monstrinhos... mas já que você falou em direção, eu vou te contar o meu monstro. É tão idiota que eu entendo quando as pessoas riem.
Eu piloto moto a mais de 3 anos e das primeiras vezes que fui ao posto de gasolina abastecer, fiquei tao nervosa que nao conseguia fazer a maldita pegar, nem na partida eletrica nem no pedal. E aquela homarada tirando maior sarro (mas ao menos se ofereceram para ajudar). Virou trauma. De lá pra cá, sempre dou um jeito de mandar o marido abastecer.
Coincidencia que HOJE (9/5) nao teve jeito, tava na reserva e nao daria para eu chegar ao meu destino, Passei no posto pela manhã(certificando que estava vazio). Deu tudo certo!!! sem bicho papão, sem risadinha de homem.
Na hora que estacionei a moto, liguei pro marido e falei: voce nem acredita, fui ao posto de gasolina SOZINHAA. Ahahah, recebi até os parabéns. E olha, to me sentindo a mulher mais independente e corajosa do mundo. Agora ninguém me segura!
Beijos
eu lembro que voce tem uma moto! alias veja que coisa: isso ja e algo de gente corajosa! andar em meio aos carros, sem mais protecao porque a moto sempre me parece mais perigosa! no entanto, voce tem esse medo, essa coisa com o posto...
entendo perfeitamente! eu tinha problema parecido para abastecer!
sabe qual seria uma otima saida pra voce? ir morar na suecia! rs... la nao tem uma alma viva no posto e e a gente mesmo que abastece! so ia ter que aprender a pilotar a bomba! rs...
beijos
e parabens por ter vencido o monstrinho!!!
Essa semana consegui ver a luz no fim do túnel, graças a Deus. E acho que no fim vai dar tudo certo.
Beijos pra ti. Sempre aqui, torcendo.
p.s: tu tás me devendo uma resposta de emails, mas fica tranquila. Responde qdo der...rs
Hoje lembrei de você quando vi um programa super interessante sobre a Suécia. Nossa, que delícia de lugar!
Bem, eu tenho lá minhas neuras também, acredites se quiser, mas não atravesso a ponte Rio-Niterói nem a pau Juvenal!
E não dirijo no Rio, só aqui em Nikiti e em Petrópolis.
Tenho maior medão de cidade grande e montoeira de carros.
Reconheço que devemos lutar e vencer esta barreiras invisíveis que nos tolhem de viver, mas o tráfego hoje em dia está muito violento e rápido, então não me arrisco tanto.
beijocas cariocas
e voce ainda teve que se mudar sozinha! talvez o fato de ser sozinha ajude a gente a protelar mais ainda. Imagino voce ai em brasilia quanto trampo nao esta tendo! ainda mais porque professora sempre leva trabalho pra casa nao e nao!
concordo total com voce! alias com seu post sobre os monstroristas! por isso e que eu digo amiga: quando se pode, viajar de aviao e uma otema saida! mas por que e mesmo que voce nao viaja de aviao? monstrinhos! rs... voce esqueceu destes que te fizeram vir ate sao paulo de buzunfa!
Mas, olha, eu viajo sim, inclusive fiz vários voos no ano retrasado, até pras Oropa, mas o pobrema é que viajo meio com Rivotril na cabeça e não gosto, porque só faz efeito quando estou quase saindo do avião.
Esqueci de mais esta neura. hehe
beijocas cariocas
Tenho muitos janeiros a mais que você e ainda me pego em mil questionamentos.
Viver, simplesmente não é fácil.
Leia o post da Liza, do delirantementefeliz:
http://lizadelirantementefeliz.blogspot.com/2011/05/falsa-imagem-da-vida-perfeita.html
Recomendei o seu a ela, e o dela a você.
Beijo!
Bjus
tem dias em que eu me olho no espelho e falo: O QUE EU ESTOU FAZENDO? A MINHA VIDA NAO CORRE, NADA ACONTECE.
O marido me olha e fala: PELAMORDEDEUS, GRACE...VC FAZ TANTA, MAS TANTA COISA QUE EU NAO SERIA CAPAZ DE FAZER. VC ESTUDA DOIS IDIOMAS..ESCREVE NESSE BLOG, num idioma que sua memória apagou, em 2007, ESTUDA DESIGN, TRABALHA COMO FOTOGRAFA, sai á procura de um apartamento para mudar para Uppsala e fazer o Mestrado, treina a pronúncia do inglês,e ainda vem com essa de dizer que o tempo é curto? Eu nunca vi um povo mais insatisfeito do que o povo brasileiro...
kkkkkk
menina, tem horas em que eu preciso pegar no freio de mao...kkkkkksenao descambo...
Eu lembro que, anos atrás, quando voltei a viver no Brasil, senti isso...ao voltar apra a Suécia, senti a mesma coisa... e assim, vamos levando...
essas inquietacoes fazem de nós, seres em busca de concretizar sonhos...
Se eu nao viver assim..sempre me instigando, a vida perde o sentido.dias felizes
graceolsson.com/blog