(Comunidade Indígena de Camanaus, 2004, foto de Marina Barbosa)
Entre os valores em uma pessoa os quais eu tenho na mais alta conta estão, em ordem de importância, a ética e a abertura ao mundo e ao novo. Não creio que para agir como ser ético nós precisemos necessariamente conhecer muita gente e muitos lugares, mas eu tenho certeza absoluta que só com certa ruptura com o nosso ser egoísta e narcisístico, em outras palavras, com um ser aberto ao mundo (e este mundo pode ser simplesmente uma outra pessoa além de mim) mais do que só a si mesmo, nós consigamos tal proeza.
A verdade é que a nossa penúltima participante do concurso "Uma foto, mil lembranças", Marina Barbosa, quem eu conheci através da Dri, tem essa segunda qualidade em demasia. Marina já viveu na Espanha e outros cantos da Europa, viajou o mundo e conheceu gente de todo canto dele. Tem formação em administração, mas foi a segunda faculdade, a Antropologia, que a impeliu para uma experiência ainda mais forte. Ela parece ter sentido que precisava conhecer mais de seu próprio povo, mais de sua "própria" cultura, mais de si mesma, mesmo que este terceiro objetivo fosse inconsciente. Do mergulho de uma convivência com indígenas na Amazônia saiu esta foto maravilhosa e este texto, um conjunto de memória e aprendizado, conectado de forma invejável!
E se, ao contrário, de todos os outros textos deste concurso ele tenha sido escrito num momento anterior*, quando Marina disse que gostaria muito de participar com eles e se eu os aceitarira minha resposta foi super positiva. A idéia do concurso não é que o texto tenha sido feito exclusivamente para ele, mas que seja um texto repleto de memórias que tenham sido escritos a partir de determinada imagem. E se esta foto aí é responsável por suscitar em Marina mil lembranças sobre sua experiência então ele está, de fato, no espírito do nosso concurso.
Vocês, saboreiem comigo, e Marina, obrigada!
Memórias do Alto Rio Negro
Eu olhava para os lados, naquela imensidão amazônica, no meio de uma comunidade indígena, a uma distância de voadeira-balsa-avião-avião do meu porto seguro, separada pelas grandes nuvens que se transformavam em chuvas fortes e que impediam qualquer movimento de sair daquela situação extremamente incômoda, de medo do desconhecido.
Quando o barulho ensurdecedor dos trovões anunciou aquela quantidade imensa de água que, em poucos segundos, despencaria naquela tapera de palafita sem paredes, me vi pela primeira vez diante da impossibilidade do ser humano de controlar a natureza, ainda que continuemos a acreditar nesta possibilidade, criando continuamente tecnologias e instrumentos de controle. Esse foi o anúncio da grande aventura em que tinha me colocado, um passo que não teria mais volta.
Fui de avião da FAB (Força Aérea Brasileira) para as comunidades indígenas do Alto Rio Negro, acompanhar o trabalho de uma ONG, mais especificamente às comunidades de Taraquá e Camanaus - compostas pelas etnias Tukano, Desana, Pira-Tapuia e Tariana -, localizadas na região conhecida como a cabeça do cachorro, Estado do Amazonas, terras que fazem fronteira com a Colômbia e a Venezuela. O Município de São Gabriel da Cachoeira possui 39 mil habitantes e a maior concentração de população indígena do Brasil. 90% dos habitantes da cidade vêm de grupos étnicos que conhecia apenas pela visão parcial e idílica, escrita por meus semelhantes nos livros de história. Somente depois fui saber: o que chamamos de índios, na verdade, hoje, no Brasil, são 225 povos totalmente diferentes entre si, com 180 línguas, compostos por 600 mil pessoas aproximadamente, sendo que, na época da conquista do território, viviam no país entre 4,5 a 5 milhões de pessoas.
Na primeira noite, na base do exército, em São Gabriel da Cachoeira, fomos ao “baile de meninas e meninos” no Pop Star, onde dançamos brega com índios aculturados, colombianos, venezuelanos, peruanos, antropólogos e militares, todos convivendo dentro do mesmo espaço. Um verdadeiro caldo cultural. O Brasil real. A terra sem lei. A dança do brega, pouco conhecida por nossas bandas paulistanas, é imensamente difundida pela região amazônica, inclusive nas comunidades indígenas daquela região. Todos se aboletavam pelo pequeno espaço, sem distinção de grupos, raças, etnias ou preferências sexuais.
Para mim, naquele lugar remoto, para minhas referências, foi o primeiro “choque de realidade”. Os índios, objetos da minha ignorância, construídos em minha memória a partir da memória coletiva absorvida nos livros escolares – os selvagens que viviam em harmonia com a natureza -, dançando, no meio daquela fumaça? Como podiam eles desejar o carro, o tênis, o relógio das propagandas, bebendo, cantando e dançando como os brancos? E como um Município isolado por matas e rios dos grandes centros, podia abrigar aquela quantidade enorme de carros, sendo que a cidade em si tinha apenas 10 ruas? Haviam muitos “caciques” de tribos desconhecidas, submersas em uma realidade com a qual nos familiarizamos nas leituras dos jornais (tráfico de drogas, invasões de terras, problemas de fronteira, garimpo, contrabando etc.), coexistindo no mesmo lugar. O silêncio do que de fato acontece naquela região paira no ar. Tudo está à vista, mas nada se verbaliza. O silêncio é proteção.
As experiências são a essência da vida, o que nos redimensiona e nos traz a sabedoria. Para quem vivia dentro do mesmo ambiente durante várias horas do dia, fazendo sempre a mesma coisa, os dias na Amazônia foram a expansão da mente e do coração. Estava mais disponível ao novo, ao diferente.
O convívio com as comunidades indígenas do Alto Rio Negro foi um marco de mudança de minhas perspectivas. Fomos recebidos com apreço, com certa expectativa, olhares curiosos que atentavam sempre para o que não damos valor - um saco de bolacha, uma peça de roupa – somados por abraços calorosos de quem esperou tanto por aquele momento. Momento de conviver, de trocar, de coexistir.
Entrei em outro tempo, um tempo sem tempo, era uma observadora experimental, sem um “propósito” específico de estar ali, sem um plano para a semana seguinte, sem saber para onde ia e quando voltava, rodeada pela densidade da natureza, pelo ar úmido e quente, por pessoas desconhecidas de uma cultura sobre a qual não tinha nenhuma informação. Estava perceptiva, tendo como única bússola para minhas ações os meus sentimentos.
Saía pela comunidade observando, fotografando, registrando o que sentia, escrevendo poemas, me comunicando com os indígenas pelo olhar, às vezes sem dizer uma palavra. Foi-me permitido pelo chefe da comunidade realizar as fotografias, mas os olhares de consentimento, foram os mais significativos. Como se abrissem o universo de suas vidas, de suas almas, para que entrasse para conhecê-los, com respeito e admiração. Eu sentia o amor de seu coração, a pureza das crianças, a beleza, alegria, o medo, e com cada um estabelecia uma relação totalmente distinta.
Neste movimento, minhas crenças se foram por terra e eu comecei a me dar conta de que somos partes integrantes da natureza e nossas relações com o outro são essencialmente como é a relação entre seus elementos (terra, vento, chuva, sol, plantas, animais etc).
O mais interessante é que na cultura indígena tradicional, tudo que ainda está preservado segue essencialmente esta dinâmica. O conhecimento e profundo respeito e adequação às suas leis são expressas na maneira de se organizarem em comunidade: o intercâmbio e rituais entre comunidades, a divisão de trabalho entre homens e mulheres, a valorização do funcionamento em unidade (“a união faz a força”, dizia o chefe da tribo de “Camanaus”).
Rememorar todo este trajeto tem a finalidade fundamental de promover a reflexão sobre a importância da memória no resgate de valores e do sentido fundamental da vida, de seus aspectos mobilizadores, necessários para a requalificação das relações humanas.
Até hoje a lembrança da experiência de convívio com os habitantes das comunidades do Alto Rio Negro se eterniza em minha memória. Pessoas que, envoltas na simplicidade e pureza dos sentimentos, me ensinaram a resgatar o amor pela natureza e a reconhecer os valores fundamentais que hoje servem de referência para a vida."
* Colunista da Revista Carta Capital on line, Marina publicou este texto primeiramente lá, em agosto de 2010.
Comentários
Belo texto da Mariana!
A cada dia vejo que tem muitas pessoas com talentos para escrever e o legal é que você, Soninha, está abrindo esse espaço para que possamos enxergar isso.
um super beijinho carioca
Sou de Manaus, mas trabalhei com mts comunidades ribeirinhas no Amazonas. Por isso entendo perfeitamente teu encantamento com a exuberância daquela terra. Adoro só de lembrar as águas caudalosas do rio negro, aquela mansidao toda, escura e lenta, o rio Amazonas, os banhos de rio, a roupa sendo lavada ali mesmo onde os peixes vem passear pelos teus pés, o canto dos pássaros, os barulhos na floresta. Eu adoro!!!
mas tbm entendo a tua reacao a invasao do brega, tbm nao gosto, nao entendo, nao compreendo, mas aquilo é festa do caboclo... e é ali que mts coisas acontecem, a mercê da gente, deles, tenho minhas razoes pra nao gostar dessa invasao brega, naquela terra sem lei :-(